SEM LIBERDADE DE ENSINO

Censura e vigilância: Professores relatam rotinas da educação militarizada

Professores civis contam experiências de censura a provas e projetos pedagógicos e comentam intervenção ideológica militar na educação

Seg, 29/11/21 - 18h16
Aulas na instituição estão suspensas desde março devido à pandemia | Foto: Exército / divulgação

A aposta do governo do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) na melhoria do ensino brasileiro por meio da militarização das escolas não encontra respaldo na realidade relatada por quem atua nessas instituições.

Ao contrário, além de ser um ensino desatualizado e, em alguns casos, promovido por professores militares sem formação na disciplina ensinada, infringe determinação constitucional referente à liberdade de cátedra (confira o que diz a legislação ao final da reportagem).

A militarização do ensino é, por vezes, acompanhada de censura, autocensura e vigilância dos trabalhos realizados pelos educadores, sobretudo os civis, como apontam os que relataram à reportagem de O TEMPO a rotina no Colégio Militar de Brasília (CMB).

Além do sistema de ensino dos colégios militares, que são instituições públicas subordinadas ao Exército com recursos do Ministério da Defesa, o governo federal criou um programa de militarização das escolas de ensino básico da rede pública municipal, estadual e do Distrito Federal.

Em cerimônia realizada no Palácio do Planalto, na última quarta-feira (24), os ministros da Educação, Milton Ribeiro, da Defesa, general Braga Netto, e o presidente Jair Bolsonaro, certificaram 43 das 127 escolas que adotaram o modelo cívico-militar, via Programa Nacional das Escolas Cívico-Militares (Pecim).

A expectativa do governo é ter 216 escolas militarizadas até o final de 2022. O critério para aderir ao programa, que tem vagas limitadas, é que as escolas estejam localizadas em comunidade vulnerável, com altos índices de violência e de evasão escolar.

Segundo esse modelo, a gestão administrativa e a direção disciplinar ficam ao encargo de policiais militares ou veteranos da reserva das Forças Armadas.

Essa é a principal diferença com relação aos colégios militares, pois as escolas da rede pública não passam por reformas para ganhar a infraestrutura e o investimento recebidos pelos colégios do Exército, equiparáveis a escolas privadas de alto padrão.

Para se ter uma ideia, no CMB há auditórios, quadras esportivas, aulas de robótica, de diferentes instrumentos musicais, e remuneração mais alta para os professores, tanto militares quanto civis, quando comparada àquela recebida com recursos do Ministério da Educação.

O plano de carreira deles é semelhante ao dos educadores dos Institutos Federais e de universidades. Há, inclusive, estímulo para qualificação dos professores, com uma gratificação maior quando o educador tem mestrado e doutorado. 

Uma das justificativas dadas pelo ministro da Educação para não ter mais escolas cívico-militares no país é justamente a falta de recursos. Isso porque é necessário dar um bônus mais generoso aos militares para que atuem nas escolas.

Reportagem do Estadão, divulgada em outubro deste ano, com dados obtidos via Lei de Acesso à Informação, mostra que militares da reserva da Marinha e Aeronáutica têm, além da renda de inativos, média de bônus de R$ 4.130 para atuar nas escolas.

Já as patentes mais altas, como as de coronel e capitão, chegam a ter adicional de R$ 7 mil por mês. Trata-se de um bônus de 30% que incide sobre a renda bruta – nesses casos, superando R$ 20 mil. Além disso, há benefícios, como férias, auxílio-alimentação e gratificação natalina.

Em contraste, os professores pagos via Ministério da Educação contam com um piso salarial de R$ 2.886 e salário médio bruto de R$ 4.040, segundo dados do próprio ministério.

Decisões disciplinares dos militares

De acordo com o ministro Milton Ribeiro, em coletiva de imprensa, os militares que atuam na área administrativa e disciplinar das escolas recebem formação para esse trabalho. "Uma das nossas premissas na capacitação de militares é lembrá-los que eles não estão num quartel, que são alunos e devem ser tratados de maneira diferente", alegou Ribeiro.

Por sua vez, o diretor de políticas para escolas cívico-militares do Ministério da Educação, Gilson Passos, informou que há diretrizes para orientar os militares na atuação escolar e não cabe a eles disciplinar os alunos. "Esse assunto é repassado à Secretaria de Educação e ela conduz a situação disciplinar do aluno". 

A afirmação do diretor, no entanto, não coincide com a informação disponibilizada no site da Força Aérea Brasileira. Na página dedicada a explicar o programa de militarização das escolas de ensino básico, lê-se que o decreto 10.004, de setembro de 2019, que institui o programa, determina “que os militares da reserva atuem na disciplina dos alunos, no fortalecimento de valores éticos e morais; e na área administrativa, no aprimoramento da infraestrutura e organização das escolas e dos estudantes".

O caso de uma escola cívico-militar da Cidade Estrutural, a 16 quilômetros do centro de Brasília, também vai contra a explicação de Passos. No Dia da Consciência Negra, comemorada no 20 de novembro, estudantes do 8º e 9º anos, além do Ensino Médio, do Centro Educacional 01 da Estrutural produziram 10 murais de celebração de personalidades negras, palavras de origem africana – como cafuné – e crítica ao racismo, incluindo o praticado pela violência policial.

Segundo reportagem do programa DFTV 2, exibida na última quinta-feira (25), os policiais militares, responsáveis pela disciplina dos estudantes, se queixaram para a direção pedagógica, atribuída a civis.

“Fui abordada e me sugeriram que eu fizesse um filtro nos trabalhos dos professores e dos estudantes. Quando me neguei, o diretor disciplinar da escola disse que iria remeter aos superiores”, contou ao jornal televisivo Luciana Pain, vice-diretora da escola.

“Eles mostram o modelo do sistema Colégio Militar do Brasil e tentam aplicar em escolas que de fato têm problemas, mas militarizá-las não resolve. Falta professor, falta concurso para professores nas redes municipal e estadual, falta remuneração adequada para atrair professores com mais qualificação”, nota Antônio Araújo, ex-professor de biologia do CMB, que atualmente dá aulas da mesma disciplina no Instituto Federal de Goiás (IFG), em Águas Lindas, e é pesquisador em educação científica pela Universidade de Brasília (UnB). 

Na avaliação do professor, o argumento de que a presença dos policiais e dos militares promove mais disciplina embute a ideia de que os professores não são capazes de fazer essa tarefa.

“O que um PM pode fazer com uma criança ou adolescente indisciplinado que o professor não faz? Se disserem que o PM vai fazer dentro da escola o que faz na rua, é assumir que estão levando para dentro da escola práticas, inclusive, de violência policial. Agora, se disserem que o policial vai convencer pelo exemplo, vai conversar, não faz sentido, porque quem aprendeu a disciplinar dessa forma é o professor ou orientador escolar com curso de psicologia”, observa Antônio.  

“Tem o argumento de que o policial é uma autoridade. Mas os professores e orientadores educacionais também são autoridades, são servidores públicos e não podem ser desacatados. A autoridade dos professores está sendo minada por esse projeto [Pecim], porque faz a comunidade entender que eles não têm autoridade. É um desmonte da educação, é um desmonte filosófico do papel da escola na sociedade”, alerta o professor.

Professores civis no CMB

A reportagem ouviu os relatos de três professores civis do Colégio Militar de Brasília, onde estudantes podem cursar do 6º ano do Ensino Fundamental até o 3º ano do Ensino Médio. Dois deles estão hoje em outras escolas e, por isso, aceitaram ser identificados. O terceiro, no entanto, ainda leciona no colégio e pediu anonimato, por isso seu codinome é acompanhado de um asterisco.

Tanto Antônio Araújo quanto Tiago Aguiar começaram a dar aulas, de biologia e de língua portuguesa respectivamente, em 2015. Antônio ficou no CMB até 2020 e Tiago até 2018. Ambos dizem que saíram da escola devido a casos de censura e vigilância que sofreram ou presenciaram com outros colegas.

Antes do CMB, entre 2009 e 2015, Antônio deu aulas para jovens e adultos na Secretaria de Educação do DF, no turno da noite, em São Sebastião, Riacho Fundo e Candangolândia. Paralelamente, pela manhã, ele trabalhava em escolas particulares da elite brasiliense: no Galois, Sigma e cursinhos pré-vestibulares. 

Ele escolheu sair desses empregos para assumir o cargo de concursado do CMB pela remuneração e pela carreira: “Se eu somasse a remuneração dos empregos que eu tinha, era quase igual à remuneração que eu receberia no CMB, trabalhando num único lugar e num só período. Além disso, havia a qualificação. Trabalhando meio período, poderia me dedicar ao doutorado. Trabalhando em mais lugares era difícil”, conta.

Antônio decidiu deixar o CMB por causa da hostilização aos professores civis que, segundo ele, era feita pelos militares, que começaram a encará-los como privilegiados devido à remuneração e qualificação. “Foi ficando cada vez mais difícil trabalhar lá. Chegou ao ponto que consegui uma redistribuição para o Instituto Federal de Goiás, em Águas Lindas, a 60 quilômetros de distância de onde eu moro. Mas isso foi determinante para fugir desse patrulhamento”, desabafa.

Para Antônio, o sistema militar se nutre do silêncio e do medo da retaliação, por isso vê importância em expor o que acontece no CMB.

“Acredito que o remédio para o que está acontecendo é colocar as coisas no espaço público. A formação do militarismo é identificar e combater os alvos. Me mostrar como um alvo para quem tem essa formação parece ser a coisa mais ridícula, mas ao mesmo tempo estou sendo alvo no espaço público. Está todo mundo vendo. Precisamos colocar esse debate no público, no campo do visível, que é onde estamos mais protegidos”, defende o professor.

Por sua vez, Tiago, que atualmente leciona no curso de Letras da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), decidiu sair do CMB devido ao que considera uma limitação à “liberdade de se pensar a metodologia e o debate”.

“Se você está alinhado com os valores mais interessantes para eles, não tem problema. Mas se o seu pensamento destoa disso, você passa a ter problemas. Há um silenciamento de determinados temas, não se pode fazer o básico, que é o debate de ideias. É um colégio muito tradicionalista, então o que foge desse tradicional é proibido”, conta o professor.

Tiago começou a dar aulas em Brasília em 2008 e, como Antônio, passou por escolas e universidades de alto padrão, além da rede pública da capital federal: Colégio Marista, Secretaria de Educação, UniCeub, IESB e Universidade Católica.

“Escolhi dar aula no CMB porque eu queria conhecer o funcionamento interno desse sistema. A estrutura do colégio militar também me atraiu, porque é fora do padrão, em comparação com outras escolas públicas do Brasil. Ele tem grandes auditórios, várias atividades esportivas, ocupa um espaço gigantesco no começo da Asa Norte [bairro nobre de Brasília]. Essas condições de trabalho me chamaram atenção, além do salário. O plano de carreira dos professores no colégio militar é o mesmo dos Institutos Federais, com salário muito bom”, detalha.

Na perspectiva de Tiago, existe uma idealização do que é o colégio militar e por isso é importante trazer a público a discussão sobre o que acontece internamente.

“O colégio tem potencial para ser o melhor, porque o investimento nas escolas militares é muito alto. Mas há muitos alunos que fazem cursinho preparatório, com professores civis, para entrar na universidade – isso eu ouvi dos próprios alunos. Tem aqueles que pegam um ‘avanço’ no meio do semestre do terceiro ano para se formarem antes no ensino médio, com a justificativa de ter tempo para estudar nos cursinhos preparatórios para o vestibular”, relata Tiago. 

“O ensino militarizado não é o que as pessoas acreditam que seja. Tem muitos problemas de didática. Esse ensino militar que está entrando nas escolas públicas é pior, porque são militares que não conhecem a realidade daquelas crianças, daquela comunidade. Falta muita formação e qualificação para que esse ensino funcione”, acrescenta o professor.

Augusto é professor no CMB há mais de duas décadas, e foi admitido por concurso quando chegou a Brasília, numa época que havia poucas alternativas para sua área de atuação com a remuneração ofertada pelo colégio.

“Eu precisava de um emprego melhor, e o único concurso para professor que eu poderia fazer na época foi esse no Colégio Militar. Eu nunca tinha colocado os pés num colégio desse tipo. Mas durante muitos anos, pelo menos para mim, dar aula no CMB foi uma experiência bem tranquila”, conta o professor.

Para ele, que quis dar o relato sob anonimato, é importante que a sociedade saiba o que acontece no colégio militar. “É uma instituição pública, pertence à sociedade, que colabora com seus impostos para o sustento do colégio militar. É direito da sociedade saber como ele funciona”, diz Augusto.

Ele ainda sustenta que casos como o da filha do presidente Jair Bolsonaro, que foi admitida no CMB sem passar pelo processo seletivo, é uma anomalia. “É direito dos pais e das mães que queiram que seus filhos acessem esse colégio saberem que existem regras e que essa história de colocar aluno sem concurso não deveria acontecer, estamos vivendo um momento anômalo na nossa história”, enfatiza.

Casos de censura e vigilância no CMB

“O que acontece muito é de os professores se sentirem vigiados, terem suas aulas escrutinadas pelo gestor militar, que geralmente é uma pessoa que não tem experiência pedagógica. É uma interferência ideológica no ato de ensinar”, avalia Antônio.

“Quando a censura não é explícita, ocorre uma autocensura nos professores, que não querem ter problema. Ninguém quer ser perseguido, nem vigiado. A gente acaba abrindo mão de algum assunto polêmico, evitamos problema. Esse discurso predomina na escolar militar”, continua o professor.

Segundo Antônio, a vigilância e censura nem sempre aconteceram no CMB, ainda menos na disciplina de biologia, que era compreendida como mais técnica pelos militares. Porém, a partir de 2018, as coisas mudaram.

“Coisas que não eram controversas, passaram a ser. O tema do meio ambiente era consenso, de que a preservação ambiental é importante, dos problemas do agronegócio, esse tipo de coisa. Mas passei a ser vigiado e não podia mais tratar disso”, afirma o professor.

“O corpo humano também, nunca foi um tema político no CMB, mas passou a ser de 2018 para cá. As aulas de educação sexual, que estão previstas no regulamento da escola, passaram a ser um problema. Passamos a receber a orientação de que não poderia mostrar imagens de genitália, aí ficava impossível ensinar”, recorda.

Ainda sobre o corpo humano politizado, o professor foi proibido de insinuar namoro entre adolescentes numa avaliação de biologia: “Teve uma prova minha que contava a história de um casal de namorados para ilustrar as alterações hormonais, como quando a gente se apaixona e quando a mulher engravida, por exemplo. Me mandaram mudar a prova porque entenderam que estava incentivando o namoro na adolescência, e o CMB é contra isso”.

De acordo com Augusto, desde que ele entrou no CMB não houve mais concurso para professores civis de áreas consideradas sensíveis, como história, geografia e literatura. Disciplinas mais politizadas, como sociologia e filosofia, segundo o professor, sempre foram lecionadas pelos militares.

“Não ter concurso é uma estratégia para criar um corpo docente no CMB mais dócil e controlável, com menos professores civis. Cada vez mais são militares temporários que dão aulas”, observa o professor.

“A maioria dos professores novos é temporário ou é coronel e capitão da reserva contratado para dar aula, de forma temporária. Na maioria das vezes eles não têm formação na área que vão dar aula. O que os qualifica é serem militares. Fazendo justiça, alguns são excelentes professores, mas outros conseguem entrar apenas por terem carreira militar”, nota Augusto.

Ele relembra dois casos de censura a avaliações aplicadas por colegas de literatura e de matemática.

“No 2º ano (ensino médio), em literatura, os alunos estudam obras do naturalismo, nada que um estudante de 16 anos não seja capaz de entender. Por conta do PAS (Programa de Avaliação Seriada, da Universidade de Brasília), o colégio deveria dar prioridade aos temas e materiais dessa avaliação para que nossos alunos pudessem ter mais chances de êxito no concurso. A leitura indicada pelo PAS era 'Bom-crioulo' [do escritor Adolfo Caminha, publicado em 1895], que trata de homossexualidade”, narra Augusto.

“As questões da prova não tratavam da homossexualidade, mas das características do movimento literário naturalismo. Às vésperas da prova, uma mãe que é funcionária da Justiça, entrou com um requerimento para que esse livro fosse retirado. Esse material foi trabalhado um trimestre inteiro em sala de aula, é exigido na avaliação da UnB, são 500 alunos do 2º ano, e uma única mãe disse que o filho dela não tinha maturidade para esse tipo de leitura, ameaçando o colégio judicialmente. O CMB recuou e a prova foi reformulada às vésperas de ser aplicada”, lamenta. 

“Outro caso de censura foi o do professor de matemática, que era músico e trabalhava escalas musicais com equações, uma coisa bacana. Cada prova tinha uma música como tema, mas numa delas ele colocou Chico Buarque. Ele teve que mudar a avaliação. Por qual motivo? Porque Chico Buarque está identificado com outra ideologia que não é a dos militares”, critica o professor.

Tiago também diz ter passado por situações embaraçosas de limitação da sua liberdade de cátedra: “Uma vez assistimos o documentário ‘Pro dia nascer feliz’. Esse documentário fala da realidade das escolas brasileiras, compara escola pública e particular. Havia necessidade de contextualizar essa realidade, o porquê de haver tanta diferença, tivemos que falar o que é a elite brasileira, o modo como essa elite pensa as relações sociais. Mas houve uma ordem para que eu não fizesse determinadas considerações em sala de aula, para que eu fosse imparcial nesse debate, como se isso existisse”. 

Outra experiência de censura a Tiago ocorreu numa prova que continha um poema clássico de Augusto dos Anjos, poeta do século 19 renomado pelo simbolismo e pré-modernismo, considerado um dos poetas mais originais e críticos de sua época.

“Esse poema mencionava o orgasmo, e por isso foi retirado. O diretor do colégio, o comandante, lê as provas e deliberadamente censura as questões que ele acha que podem chocar a tradicional família brasileira”, critica Tiago. 

“O ensino [no CMB] é anacrônico, completamente fora do que se pensa atualmente sobre o ensino de língua portuguesa. Está parado no tempo. O modo como querem que os professores deem aula é o modo dos anos 1980, com o professor cobrando o conteúdo de maneira descontextualizada, sem desenvolver o senso crítico e o debate com os alunos”, observa o professor.

Outra experiência de cerceamento que ele afirma ter presenciado ocorreu durante as eleições de 2018, quando os estudantes buscaram o professor para discutir o processo eleitoral e repercutir notícias da imprensa sobre os candidatos.

“Eu não fazia campanha para político nenhum, a escola não é para se defender político A ou B. Mas a orientação é, basicamente, que eu não podia ter respondido os alunos. Só de haver esse tipo de diálogo político com os alunos, por eu orientá-los a buscar leituras para além das bolhas, foi motivo de censura. Falar de eleição era assunto proibido. Foi uma repreensão direta da direção e do próprio comando do colégio”, relembra.

Fora da sala de aula, houve ainda outro caso de repressão ao livre pensamento dentro do CMB, desta vez envolvendo a simulação da Organização das Nações Unidas (ONU), realizada geralmente em escolas privadas e no colégio militar.

“Teve um grupo que decidiu defender o direito ao casamento LGBTQIA+, esses alunos falaram dos direitos das minorias, e a simulação foi encerrada. A justificativa é que não pode, que o colégio militar não é o lugar para se discutir esses temas, e pronto, não tem mais argumentação ou debate”, ressalta. 

Por outro lado, segundo Tiago, as diretrizes da escola propõem um ensino contemporâneo da língua portuguesa, alinhado aos mais recentes consensos acadêmicos sobre a didática na área de produção de texto, leitura e gramática. Mas essa era a teoria do colégio militar, na prática havia outra orientação.

“Na prática, o que o CMB defende é um ensino tradicionalista, voltado para a memorização das regras gramaticais, regras que são totalmente descontextualizadas. Muitos alunos chegam ao 3º ano com bastante dificuldade em leitura, interpretação e produção de textos, e ainda com dificuldade em gramática, mesmo sendo o foco do começo ao fim do Ensino Médio”, nota.

Intervenção ideológica no Enem não surpreende

A reportagem consultou os professores sobre o recente caso de exoneração coletiva no Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira), provocada pela tentativa de intervenção do governo federal na prova do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) deste ano. O exame, concluído no último domingo (28), é, para algumas universidades, o único meio de acesso ao ensino superior público brasileiro, além de avaliação utilizada na concessão de bolsas de estudo em faculdades e universidades privadas.

Na cerimônia dedicada às escolas cívico-militares, o presidente Bolsonaro repercutiu as acusações de interferência ideológica na prova do Enem: “Se eu pudesse interferir, a prova estaria marcada para sempre com questões objetivas, e não com questões ideológicas que ainda saíram nessa prova”.

“Eu queria sim botar uma questão lá, se pudesse, quem foi o primeiro general que assumiu em 64? Em que data? A maioria do pessoal da imprensa iria errar. O que eu queria com isso? Não é discutir o período militar, é começar a História do zero”, disse ainda Bolsonaro.

Esse tipo de ameaça de intervenção ideológica na educação brasileira não surpreende os professores Antônio e Tiago.

“Quando o desmonte na educação chega na maior prova de acesso ao ensino superior no Brasil, é porque já está acontecendo nas escolas. Não começa no Enem. Esse discurso de que 'não tem a cara do governo', que a prova não avalia nada, é um desdobramento do que acontece nos colégios militares e nas escolas cívico-militares, que são o laboratório do que eles querem na educação do país todo”, alerta Antônio.

“O que ocorreu no Enem não surpreende porque existe no governo a ideia de que alguns temas não devem ser discutidos se for numa perspectiva diferente daquela acreditada por eles. É uma forma de ter controle sobre temas que eles consideram delicados, como ditadura militar. É uma tentativa de controle da história, da memória do país”, reforça Tiago.

O que diz a legislação sobre liberdade de ensino?

Os casos de censura no CMB relatados pelos professores esbarram no artigo 206 da Constituição Federal de 1988, a chamada “Constituição Cidadã”. De acordo com o que rege esse artigo, o ensino no Brasil deve seguir princípios como: “liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber; pluralismo de idéias e de concepções pedagógicas, e coexistência de instituições públicas e privadas de ensino”.

Há ainda a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, nº 9.394, de 1996, que no artigo 3º regulamenta o que está previsto no artigo 206 da Constituição: “liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar a cultura, o pensamento, a arte e o saber; pluralismo de idéias e de concepções pedagógicas; respeito à liberdade e apreço à tolerância”.

Em maio de 2020, a ministra do Supremo Tribunal Federal (STF) Cármem Lucia se manifestou sobre o tema ao relatar a ADPF 548. O resultado do julgamento foi a nulidade das decisões proferidas pela Justiça Eleitoral de cinco estados (Minas Gerais, Paraíba, Mato Grosso do Sul, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul) que impuseram a interrupção de manifestações públicas de apreço ou reprovação a candidatos políticos, em ambiente virtual ou físico de universidades, às vésperas das eleições.

Em outras palavras, tratava-se de proibir aulas e reuniões que abordassem de temas políticos na universidade, em clara afronta aos princípios da liberdade de manifestação de pensamento e autonomia universitária, segundo consta no registro virtual da ADPF.

“Liberdade de pensamento não é concessão do Estado. É direito fundamental do indivíduo que pode até mesmo contrapor ao Estado. [...] Portanto, qualquer tentativa de cerceamento da liberdade do professor em sala de aula para expor, divulgar e ensinar é inconstitucional”, argumentou a ministra Cármen Lúcia.

Outro lado

A reportagem solicitou posicionamento do Ministério da Educação para algumas das acusações feitas pelos professores, mas não obteve resposta até a publicação desta reportagem. 

O Exército e o Colégio Militar de Brasília também foram consultados para apresentarem seus posicionamentos quanto às acusações de censura, vigilância, má formação dos professores militares e falta de concursos.

Via assessoria de comunicação, o CMB informou que não se manifestará sobre as acusações. O Exército não se posicionou até a publicação desta reportagem. O espaço segue aberto para incluir o posicionamento da instituição.

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