Aquilo que está escrito no coração não necessita de agendas porque a gente não esquece. O que a memória ama fica eterno. A citação de Rubem Alves abraça esta matéria, pois aqui falaremos de uma paixão que não se limita ao tempo, ao espaço físico, à materialidade do corpo e nem mesmo aos pouco mais de 90 minutos de uma partida de futebol. É certo que, dentro de campo, jogadores constroem clássico após clássico a história de uma rivalidade centenária. Mas o que seria de um Atlético e Cruzeiro sem os torcedores que o cercam?

Este será o primeiro clássico que familiares, amigos, conhecidos, atleticanos e celestes, não contarão com a presença física e o carisma de duas vovós que foram e serão para sempre exemplos do que é torcer. Em tempos onde uma perturbadora onda de violência assola o futebol, escolheremos preservar as lembranças da vovó Rosa, icônica torcedora do Cruzeiro que cantava os títulos e conquistas celestes pelas ruas de Contagem, e da vovó do Galo, Ana Cândida de Oliveira Marques, que com seu amor incondicional tornou-se uma bandeira do Galo e figura presente em todas as partidas do clube. As duas faleceram praticamente em um espaço de um mês, entre dezembro do ano passado e janeiro deste ano. Mas a vida, como no futebol, é muito sobre legado. E, indubitavelmente, elas deixaram marcas. O futebol era o amor que as acompanhava. E isso será eterno.

A devoção ao Alvinegro

O Atlético, em nome de toda a diretoria, funcionários e torcedores, deseja força aos familiares e amigos da dona Ana Cândida, a Vovó do Galo, que nos deixou no dia de hoje. Ela sempre será uma das maiores representações de amor ao Galo em toda nossa história! 🖤🤍 pic.twitter.com/urNTQDOTZW

— Atlético 😷 (@Atletico) January 13, 2022

Na memória dos familiares, Ana Cândido, que nos deixou aos 101 anos, reside. Marcelo Marques, 31 anos, neto de Ana, compartilhou a aavó com milhões de atleticanos. A proximidade do clássico lhe faz voltar no tempo, para o último Atlético e Cruzeiro onde a torcida alvinegra esteve presente no estádio. Foi em 2020, antes da pandemia ser decretada, uma vitória do Galo por 2 a 1 sobre o Cruzeiro, pelo Mineiro. Uma partida decidida no fim com um gol de Otero.

Ana Cândida, 101 anos, partiu para a arquibancada de cima nesta quinta-feira. A "Vovô do Galo" era um verdadeiro símbolo do Atlético Mineiro na arquibancada, onde era frequentemente vista em jogos do clube.

Que em paz descanse. pic.twitter.com/AWRtTu3BJ7

— O Canto das Torcidas (@OCantoOficial) January 13, 2022

Aquele foi o último clássico que ele assistiu ao lado da avó. Com carinho, ele relembrou a rotina de Ana a cada clássico. Tudo começava com o descanso. Pois a vovó do Galo gostava de se concentrar, assim como os jogadores. Uma agenda que ainda incluía unhas pintadas e muita fé.

"Se ela tivesse viva, o dia anterior ao jogo seria o momento dela descansar, porque ela falava que concentrava junto com os jogadores. Como ela entendia a limitação física dela, ela sempre descansava muito antes para poder aguentar ir ao jogo, porque ela ficava em pé o tempo inteiro. Antes de clássico, ela sempre ia fazer as unhas e pintava de preto e branco, fosse francesinha ou fosse só a do dedão preto, por exemplo, mas ela sempre fazia isso. Ela rezava com o terço dela, pedindo para o Galo ganhar e sempre saía de casa com o pé direito e entrava no Mineirão com o pé direito, fazendo em nome do pai", contou Marcelo./

O engenheiro de controle e automação também se recorda de algo que sempre fez parte do ritual da família ano após ano: a roupa da sorte.

“E sempre tinha a roupa, isso é de todos nós. A gente sempre vai com a mesma roupa. A gente nunca estreia camisa do Galo em clássico ou jogo difícil e normalmente a gente tem um look só para o ano inteiro, principalmente para jogos decisivos. Então a gente vai acumulando vitórias com a roupa da sorte”, concluiu o neto da vovó do Galo, emocionado e agradecido por mais uma homenagem a sua avó.

Paixão azul cantada aos quatro cantos

19:21 - Os títulos já mudaram, mas o amor pelo Cruzeiro é eterno! 🔵⚪️🦊

"Ô MEU PAI, EU SOU CRUZEIRO, MEU PAI!" #OrgulhoDeSerCruzeiro pic.twitter.com/LCzenO10DL

— Cruzeiro 🦊 (@Cruzeiro) July 9, 2020

Vovó Rosa ganhou o coração da torcida azul quando viralizou nas redes sociais ao ser filmada andando na rua e cantando a música: “Ô MEU PAI, EU SOU CRUZEIRO, MEU PAI!”, celebrando o título do pentacampeonato da Copa do Brasil. Aquele canto seguirá ecoando, uma lembrança doce de quem conviveu com Rosa de perto e a cada duelo do Cruzeiro se lembrará da empolgação da senhora com o time estrelado, nas boas e também nas más horas. É o que retratou, em contato com o Super.FC, a professora Lisandra Maria Serapião, 39 anos, uma das netas de dona Rosa.

O Cruzeiro, assim como toda a Nação Azul, está muito triste com o falecimento da grande cruzeirense Vovó Rosa.

Nossos pêsames aos familiares e amigos neste momento tão triste. Descanse em paz.

📽 Divulgação / Cruzeiro pic.twitter.com/LgQ37QvkkV

— Cruzeiro 🦊 (@Cruzeiro) December 7, 2021

“Em dias de clássico, ela vestia a blusa do Cruzeiro cedo e ia para a rua. Cantava brincava. Como ela era muito conhecida no bairro, era uma festa só. Cruzeirense cantando com ela, atleticano instigando. Ela não gostava que o Cruzeiro, por exemplo, começasse ganhando, dizia que era azar (risos)”, contou Lisandra, revelando uma Rosa que gostava de fortes emoções. “Algumas vezes ela acertava e falava: ‘tá vendo! Num gosto que o Cruzeiro sai na frente’. Ela não assistia pênalti, ficava de olho fechado e repetindo ‘cafifa de João pelado, aí não pode entrar gol’”, acrescentou a neta.

Dona Rosa era uma mulher de bordões. Lisandra se recorda bem deles. “Quando era gol do Cruzeiro sempre repetia, ‘vai buscar lá dentro, Victor’ ou o goleiro que estivesse no gol do Atlético”. Uma mulher de paixões e que passou seu amor, em verso e prosa, para gerações, mesmo que alguns atleticanos tenham escapado na família. Acima de tudo, o respeito, a dedicação ao que defendia e o carinho de ambos os lados, como deve ser no futebol, prevaleceu.

“Ela tinha uma paixão pelo Fábio e conseguiu transmitir o amor para netos e filhos (nem todos). Minha vó era uma pessoa extremamente gentil e amorosa. Muito querida e amada por todos, independentemente do time. Ela conseguia unir cruzeirenses e atleticanos com sua paixão”, concluiu Lisandra.

Seja no ‘vencer, vencer, vencer, este é o nosso ideal’, ou ‘nas páginas heroicas e imortais’, o que a memória ama ficará eterno.