De geração em geração

Futebol amador desperta paixão que se cultiva em família

Por um amor que não se explica, interior mantém tradições e rivalidades regionais há décadas; dedicação e talento são passados de gerações a gerações

Com todas as suas singularidades, campo do Minas, de Piracema, foi palco da final do Regional no último domingo | Foto: Douglas Magno
Thiago Nogueira| @supernoticiafm
16/12/18 - 07h00

No domingo passado, River Plate e Boca Juniors decidiam a Copa Libertadores em Madri, na Espanha. No mesmo horário, em Piracema, Minas e Tupanuara faziam a final do Regional, o mais tradicional embate entre times amadores do Centro-Oeste mineiro. Glamour e grandezas à parte, algo pulsava tão forte aqui quanto além-mar: a paixão incontida por aquilo que se conhece como futebol. “Como diz o outro: quem gosta gosta mesmo. Nem a final da Libertadores atrapalha”, ouviu-se de um torcedor na arquibancada.

Não é só uma partida de futebol. Na noite anterior à final do torneio-raiz, Celminho, o jogador faz-tudo do Minas, não conseguia dormir. Era uma ansiedade só, muita coisa a aprontar no palco da decisão e a angústia de uma espera de oito anos pelo título regional. “É como se o time fosse minha segunda família”, ressaltou ele, antes de engasgar com a própria fala e se derramar em lágrimas. Aos 43, o veterano, que ainda dá sua parcela em campo, tem na equipe o que mais o enche de orgulho: o filho Kaique, centroavante do Minas. Parrudo, por assim dizer, o jogador de 23 anos tem mantido as honras com maestria. Coube a ele o papel de estufar as redes duas vezes na vitória por 4 a 2 que deu ao Minas, de Piracema, o título sobre o Tupanuara, da vizinha Carmópolis de Minas. “Falei que ia deixar pelo menos um”, disse o artilheiro da competição, com sete gols.

Essa ligação familiar na várzea é muito mais comum do que se pensa, e o duelo do último domingo reservou outras histórias assim. A zaga do Tupanuara era formada pelo pai Luiz Fernando, 39, e pelo filho Luiz Otávio, 16, que, inclusive, acabou expulso, dificultando as pretensões da equipe. Na arquibancada, Dona Maria da Conceição, 65, não se continha. O filho Zico, 41 – apelido muito bem tratado por ele, diga-se –, foi escolhido o melhor do campeonato. Na festa do título, estava ela no gramado, de abraços e beijos não só com o filho, mas também com o neto Ziquinho, 20, lateral-esquerdo campeão. “É o maior orgulho. O sonho de todo filho é estar ao lado do pai e ser vencedor, não só no futebol, mas em qualquer coisa”, disse o mais jovem da geração.

E a base vem forte. Na torcida do Tupanuara, Lisley, 33, mulher do zagueiro Juliano, 36, carregava na barriga o filho Nicolas. Aos oito meses de gravidez, ela não costuma medir esforços para acompanhar o marido, sempre com as filhas Jennifer, 13, e Pietra, 7, ao lado “Elas gostam de acompanhar. É uma paixão que passa de pai para filho”, destacou Juliano.

Peculiaridades

Por tudo o que ela representa, a final do Regional se desenhou nervosa e aguerrida. Visitante, a torcida carmopolitana fez muito barulho. Quem era forasteiro achava que os Piaia, assim conhecidos, eram até os donos do terreiro. Eles pagaram entrada, acreditando na virada, mesmo depois da derrota no primeiro jogo, em casa, por 2 a 0. A pressão, como de se esperar, sobrou até para a arbitragem. Não faltaram objetos atirados da arquibancada e ameaças aos caras do apito. “Na várzea tem que usar o bom senso, é muito amor, muita paixão dos jogadores. Aqui é onde o pau tora mesmo”, já avisava, antes da partida, o árbitro Alexandre Reis, do quadro profissional da federação.

O jogo em Piracema, aliás, reuniu o que há de mais pitoresco no futebol amador. A bola caia fora do campo a todo momento, o que obrigou os gandulas a buscarem-na umas duas dezenas de vezes barranco abaixo. Os atletas que disputam o Regional são normalmente moradores das cidades das equipes ou, de alguma forma, ainda têm laços com a terra natal. Dificilmente alguém recebe para jogar, salvo algum talento diferenciado. Mas vale oferecer algumas compensações, como pagar a gasolina de um jogador de outra cidade que aceita jogar pelo time local. Para o jogo decisivo, o Minas resolveu contratar dois seguranças, já que o destacamento de polícia não poderia comparecer. Não havia ambulância de prontidão no campo, mas, se necessário, o veículo poderia ser acionado. O hospital estava avisado.

 

A preleção

Sombrio e sofrendo com infiltrações, o vestiário é o local onde os sentimentos se afloram. Vale a palavra da experiência, vale o discurso mais fervoroso. É hora de motivar o companheiro. “Quero pedir concentração, humildade. Os 11 que estão entrando em campo não são 11, não. São 27 mais milhares de torcedores, porque estamos representando a cidade, as famílias. Se tiver vencedor, não vai ser eu, vai ser a cidade inteira”, berrou o atacante Ícaro, do Minas. “Tem que dar a vida nesse jogo. Se tiver que deixar sangue dentro de campo, deixa. A gente vai conseguir”, incentivava o técnico Arthur Batista no vestiário do Tupanuara.

 

O campo

Lucas Oliveira é, pode se dizer, o zelador do campo do Minas, em Piracema. Ele mora bem ao lado e ajuda a manter o local. “Limpo, corto a grama, faço a marcação do campo, coloco a rede, coisas do tipo”, contou. Não é fácil manter a estrutura, que pertence à própria associação esportiva. Uma semana antes da decisão, o muro caiu, e foi preciso que o presidente Taquinho desse um jeito de arrumá-lo usando as economias. “Não temos recursos de órgão oficial. A gente vem lutando e sobrevivendo. Temos que contar com colaboradores. Às vezes, vem um anunciante que ajuda a gente”, destacou o dirigente, no posto há 18 anos.

 

Os torcedores

Domingo sem jogo de futebol no interior não é domingo. Tem missa pela manhã, almoço de família e, depois, lá para o meio da tarde, o compromisso é descer para o campo. A final do Regional em Piracema superou as expectativas. O público total chegou a 900 pessoas, sendo que 150 delas eram mulheres e crianças que não pagaram para entrar. Nada mal para uma cidade que tem pouco mais de 6.000 habitantes. Piracema também tem seu campeonato municipal jogado durante o ano.

 

Os recursos

Como forma de ajudar nas despesas anuais, a final teve ingresso ao preço único de R$ 5. O bar também vira uma boa fonte de arrecadação, com a venda de bebidas e dos tradicionais churrasquinhos. Para participar do Regional, os clubes pagam R$ 400 de inscrição para aqueles que disputam a competição com apenas uma equipe – o Tupanuara, por exemplo, jogou com um “segundo quadro”, time formado por jogadores aspirantes. Com o dinheiro, dá para comprar os troféus e medalhas e ainda garante a premiação: R$ 500 ao vice e R$ 1.000 ao campeão. Só de conta de luz, o Minas paga R$ 200 por mês.

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