Quando se fala em países democráticos, dificilmente alguém deixará de citar os Estados Unidos. Mas os próprios norte-americanos, na reta final de uma das mais importantes eleições de todo o mundo, estão céticos. Em pesquisa do Siena College com “The New York Times”, 45% dos cidadãos afirmam que a democracia não está fazendo um bom serviço na representação do povo. E, mais grave, pelo menos um quarto dos eleitores não acredita que o derrotado aceitará o resultado das urnas (27% no caso de Kamala Harris e 74% no caso de Donald Trump, segundo o Pew Research Center).
O sistema político norte-americano tem dado sinais de desgaste no século XXI. A longa batalha judicial que garantiu a vitória de George W. Bush sobre Al Gore em 2000 expôs a críticas o modelo de escolha no qual o Colégio Eleitoral se sobrepõe ao voto popular. Em 2008, o discurso do medo foi levado ao extremo na campanha em que os EUA elegeram o primeiro presidente negro, Barack Obama, vitória incontestada pelo republicano John McCain, ciente das forças que poderia libertar em caso contrário.
Em 2016, a previsibilidade das pesquisas foi demolida pela vitória do até então “outsider” Trump, que soube manipular redes sociais e, principalmente, as regras do colégio. E a invasão do Capitólio, em 6 de janeiro de 2021, foi o violento resultado da primeira recusa de um candidato a aceitar o resultado de um pleito no país.
Fraturas na cultura política
Esse período não transcorreu sem fraturas. Os Estados Unidos, que apareciam como uma democracia completa no Economist Democracy Index (EDI), foram decaindo ano a ano até se tornarem uma democracia imperfeita em 2016 – atrás de países como Uruguai e Chile –, tendo atingido sua nota mais baixa há três anos (7,85) e não melhorado um décimo sequer desde então. Diferentemente do que se poderia supor, o processo eleitoral é o que obtém a melhor pontuação no EDI 2023, seguido pela participação popular e pelas liberdades civis.
O problema está no que organizadores do estudo chamam de “cultura política”, deteriorada pela fissura social e pelos debates irascíveis em questões como saúde reprodutiva, religião, clima, gênero e origens étnicas. Fenômeno que leva a desconfianças e a uma divisão “nós x eles”, que atinge o “funcionamento do governo”, segundo item responsável pela retração do índice nos EUA. Isso se dá pela redução do pluralismo de visões e da sub-representação de alternativas políticas nas instituições.
Violência contra agentes públicos
Essa dinâmica que se forma entre polarização e insatisfação com as instituições tem uma face agressiva. Cada vez mais agentes públicos têm sido vítimas de agressões. O estudo “Rising Threats to Public Officials”, publicado em maio deste ano na revista da Academia Militar de West Point, aponta que as acusações judiciais federais por ameaças a funcionários públicos passaram de 38 por ano, entre 2013 e 2016, para 62 por ano, entre 2017 e 2022 – não apenas policiais e trabalhadores na segurança, mas também agentes do sistema eleitoral.
Se levar em conta as denúncias conhecidas que não se transformaram em processos federais, são mais de 320 casos de ameaças e assédios em 40 Estados e no Distrito de Colúmbia (o Distrito Federal dos EUA) de janeiro a julho de 2024, de acordo com levantamento do Bridging Divides Initiative, da Universidade de Princeton. É um crescimento de 30% em relação ao mesmo período do ano passado e quase o dobro (87%) em relação a dois anos atrás.
Extremismos na campanha
Extremismo que se volta, também, contra o próprio ambiente eleitoral.Ao longo deste ano, foram registradas pelo menos duas tentativas de assassinato de um dos candidatos, na Pensilvânia e na Flórida, além da tentativa de invasão de convenção nacional partidária em Chicago. Pouco ajudou a atenuar o ambiente a proliferação de fake news sobre imigrantes comendo pets, fábricas de furacões, associações com o fascismo, entre outras. Não sem motivo, 79% dos norte-americanos disseram ao Pew Research Center que não se sentem orgulhosos da campanha eleitoral.
Diante dos fatos, fica evidente que há mais em jogo no resultado da eleição de 5 de novembro do que a vitória de Trump ou Kamala. Contudo, a realização de um pleito com mais de 240 milhões de eleitores populares e a existência de instituições formais às quais se pode recorrer pela lisura do processo sem o recurso à violência mostram que há motivos para se acreditar em democracia na América.