Em uma análise abrangente do cenário eleitoral americano de 2024, a professora Luciana Mello, professora do curso de relações internacionais e comércio exterior, da área de gestão e negócios do Centro Universitário IBMR, e especialista em gestão de políticas públicas em gênero e raça, oferece uma perspectiva detalhada sobre os múltiplos aspectos que moldam esta eleição histórica. Sua análise atravessa desde as peculiaridades do sistema eleitoral até as profundas questões sociais que influenciam o pleito neste ciclo.
O sistema eleitoral dos Estados Unidos apresenta características únicas que o diferenciam significativamente do modelo conhecido pelo eleitorado brasileiro. "Enquanto aqui nós temos eleições diretas, vários partidos políticos, o que permite na teoria que tenhamos vários candidatos à Presidência, nos Estados Unidos o sistema é diferente", explica a professora.
Luciana Mello detalha o processo em duas etapas principais: primeiro, as primárias, onde os eleitores escolhem os candidatos de seus partidos preferidos em cada Estado. "Em alguns Estados, o eleitor tem que ser filiado ao partido para poder fazer essa indicação", ressalta. Em seguida, vem a eleição propriamente dita, realizada através do colégio eleitoral.
Uma das peculiaridades mais significativas do sistema é a regra "the winner takes all" ("o vencedor leva tudo"): "Mesmo que o candidato não tenha o voto de todos os delegados, se ele tiver o voto da maioria dos delegados, ele leva também os votos daqueles delegados que não votaram nele".
O desafio migratório
A questão da imigração emerge refletindo tanto a história dos Estados Unidos quanto os desafios contemporâneos. "Os Estados Unidos sempre foram um destino de imigrantes, um país das oportunidades desde sempre em momentos de crise", contextualiza a especialista em história das relações internacionais.
Luciana Mello aponta para uma confluência de crises globais que intensificam os fluxos migratórios: "Nós estamos vivendo um momento de uma grande crise. Uma crise climática, uma crise humanitária, uma crise capitalista. Está cada vez mais difícil para os países resolverem as suas questões internas, sociais e econômicas".
Esta realidade cria uma dinâmica complexa na sociedade americana. "Os Estados Unidos se tornam um país economicamente bastante dependente da mão de obra imigrante", observa a professora, ressaltando, porém, a existência de uma "relação de amor e ódio" com os imigrantes. O mito do imigrante que "chega para tomar o lugar" do estadunidense persiste, mesmo que a realidade mostre um quadro diferente: "O perfil do imigrante que vai para os Estados Unidos não é, necessariamente, esse imigrante que consegue chegar e tomar um lugar, ocupar um posto de trabalho mais qualificado".
As políticas migratórias propostas por Trump, inclusive, podem ter um efeito mobilizador na comunidade imigrante, segundo a professora: "As políticas de migração que o Trump propõe podem ter um efeito de despertar a população imigrante pelo processo eleitoral". No entanto, ela adverte que existem limitações práticas a esta mobilização.
"O imigrante, normalmente, vive um cotidiano muito exigente, tem que lidar com demandas, com dificuldades muito exigentes", explica. Isto levanta questões importantes: "Até que ponto o imigrante está olhando para isso, até que ponto ele está atento para uma eleição, quando ele tem demandas às vezes de sobrevivência muito mais prementes?", questiona a professora.
Polarização e tensões políticas
A polarização política que marca as eleições americanas não é um fenômeno isolado, conforme analisa Luciana: "Desde o primeiro mandato do Trump que nós assistimos a um cenário de extrema polarização, que também não é uma exclusividade dos Estados Unidos. É um movimento quase que global".
Esta polarização se manifesta na diminuição do diálogo entre diferentes posições políticas: "Existe pouca flexibilidade para ouvir, para ponderar; as opiniões e os posicionamentos estão muito radicais". A professora alerta também para os riscos desta situação, especialmente considerando os eventos pós-eleitorais de 2020.
Uma consequência poderia ser a repetição do cenário de 6 de janeiro de 2021, com a invasão do Capitólio. "Eu acredito que existe, sim, a possibilidade de vermos novamente algum tipo de reação de apoiadores do Trump, caso ele venha a perder a eleição", pondera a especialista. No entanto, ela expressa confiança nas instituições: "Acredito que os serviços de segurança dos Estados Unidos tenham aprendido alguma coisa com aquele episódio".
Outro aspecto preocupante do atual cenário eleitoral é a proliferação de fake news, fenômeno que Luciana Mello analisa sob a perspectiva da sociedade contemporânea: "Nós estamos vivendo, globalmente, um momento da humanidade em que tudo é muito instantâneo. Para utilizar o conceito do (filósofo Zygmunt) Bauman, são sociedades líquidas".
Esta característica da sociedade moderna facilita a disseminação de desinformação: "Como as pessoas, por vezes, não têm mais a paciência de investigar aquela notícia, de investigar o que está lendo, elas simplesmente passam o dedo numa tela, consomem uma informação equivocada e ficam com aquela informação".
Estratégias de campanha
Na análise das estratégias de campanha, Luciana Mello observa como Trump tenta associar Kamala Harris às políticas econômicas do governo Biden: "O Donald Trump sempre invoca as questões econômicas do governo Biden, que não agradaram, não atenderam os anseios da população para atacar a Kamala".
No entanto, esta estratégia pode não ser tão eficaz quanto pretendido: "Em um dado momento (no debate de 10 de setembro, por exemplo), ela inclusive disse que ele precisava se lembrar que ele estava concorrendo com ela, e não com o Biden". A professora considera esta abordagem "uma tentativa, embora óbvia, que me parece que não surte efeito".
A combinação de um sistema eleitoral único, tensões sociais profundas, questões migratórias complexas e um ambiente informacional desafiador cria um cenário sem precedentes. A forma como a sociedade americana navegará por estas águas turbulentas terá implicações não apenas para os Estados Unidos, mas para todo o sistema internacional.