Como qualquer conflito dessa escala, a guerra da Ucrânia, que completa três anos nesta segunda-feira (24/02), tornou-se, também, uma batalha de narrativas. Os dois lados tentam dominar a opinião dos próprios cidadãos e do mundo. Nesse embate, os dois protagonistas — o presidente da Rússia, Vladimir Putin, e o da Ucrânia, Volodymyr Zelensky — são chamados de ditadores. Mas eles são de fato?

O tema se tornou mais presente no noticiário na última semana, após o presidente dos EUA, Donald Trump, dizer que Zelensky é um ditador com “4% de aprovação” dos ucranianos. A informação do norte-americano é falsa — o nível de confiança da população no presidente passa de 50%, segundo o Instituto Internacional de Sociologia de Kiev.

Zelensky, originalmente um comediante, assumiu a presidência da Ucrânia em 2019. O mandato de cinco anos terminou em maio de 2024, e o país não teve novas eleições. Desde o início da guerra, a Ucrânia está sob lei marcial, isto é, uma substituição temporária de direitos civis e políticos por leis militares. Pela legislação ucraniana, nessas situações as eleições são suspensas. Isso também ocorreu, por exemplo, no Reino Unido durante a Segunda Guerra Mundial. Para os efeitos da lei nacional, portanto, Zelensky permanece democraticamente eleito.

Na Rússia, o poder está nas mãos de Putin há mais de duas décadas. O presidente está em seu quinto mandato — em todos eles, eleito pelos russos. Sua chegada ao cargo foi em 2000, desde então interrompida somente por um período como primeiro-ministro, já que as leis russas impediam mais de dois mandatos consecutivos. Seu governo alterou essa norma e, agora, ele estará elegível novamente em 2026 para governar até 2030, quando terá 78 anos.

A integridade das eleições na Rússia são frequentemente questionadas pela comunidade internacional, com um rastro de opositores mortos ou presos — mas sem comprovação de envolvimento direto do Kremlin nesses casos. Em 2019, um de seus opositores mais vocais, Alexei Navalny, morreu após um mal súbito durante uma caminhada, o que levantou suspeitas, nunca comprovadas, de assassinato.

Democracia e ditadura não são ideias perfeitamente definidas, pondera a professora de Relações Internacionais da PUC Minas Raquel Gontijo, e um cenário de guerra torna esse entendimento ainda mais nebuloso. “A literatura que trabalha com esse tipo de conceito, em geral, trabalha muito mais com a ideia de um espectro. Há democracias mais sólidas, mais saudáveis, com instituições mais robustas. E há democracias mais frágeis, com instituições fragilizadas, problemas de governança, às vezes um governo muito centralizado. No extremo, você teria, de fato, ditaduras com um poder extremamente centralizado e instituições de controle sobre esse poder muito fracas”, introduz.

Não basta haver eleições para um governo ser considerado democrático, continua ela. “Além das instituições do poder e do governo em si, entra a relação desse governo com a sociedade, como liberdade de expressão, liberdade para as pessoas questionarem o próprio governo, não haver perseguição política sobre a oposição e não haver perseguição sobre jornalistas”.

No contexto do conflito, é algo nem sempre tão claro na Ucrânia, prossegue a pesquisadora. “Acho muito complicado afirmar que o Zelensky seja um ditador, mas de fato a gente observa que são instituições que estão tensionadas por conta do contexto da guerra que está ocorrendo, que demanda certas decisões mais ágeis, um poder mais centralizado naturalmente no Executivo”, diz.

“No caso da Rússia, observamos, sem dúvida, um governo muito centralizado no poder Executivo, nas mãos do Putin. Nessa relação do governo com a sociedade, há várias características que indicam a ausência de uma democracia saudável. Observamos muito controle governamental sobre a mídia, muita censura, perseguição sobre a oposição, inclusive com pessoas desaparecidas e mortas de forma suspeita. Tudo isso indica que não dá para observarmos uma democracia saudável na Rússia. Dito isso, podemos afirmar categoricamente que o Putin seja um ditador? Eu não me sinto confortável em fazer essa afirmativa”, acrescenta ela.

A professora observa um governo híbrido na Rússia, com características de democracia, mas também de autoritarismo, “Há essas duas características presentes e claramente observáveis, mas certamente o que eu posso afirmar é que a Rússia não apresenta uma democracia saudável de forma alguma”, conclui.