Três anos depois do início da guerra entre Ucrânia e Rússia - que começou em 24 de fevereiro de 2022 - o mundo segue na expectativa sobre os rumos do conflito. Os contornos do combate ganharam um novo elemento com a volta de Donald Trump à presidência dos EUA. Com a posse do mandatário, o governo ucraniano - que recebia constante apoio da Europa e dos Estados Unidos - viu os norte-americanos romperem com os direcionamentos da era Joe Biden e passarem a negociar diretamente com Putin. Diante disso, surge o questionamento: a ‘influência trumpista’ estaria desenhando a reta final do conflito?
Para a professora do Departamento de Relações Internacionais da PUC Minas, Raquel Gontijo, a pergunta é audaciosa levando em conta que conflitos desse perfil costumam ser suspensos temporariamente por meio de um acordo de trégua e depois retornam porque as questões de fundo não estão plenamente resolvidas. “Esse ímpeto expansionista da Rússia e a questões identitárias dentro da Ucrânia, possivelmente, não serão resolvidos com o acordo de paz que está sendo proposto, negociado e refletido atualmente.”
Conforme Gontijo, a entrada de Trump no cenário conflituoso coloca uma nova variável muito importante no combate. “A volta dele ao poder coloca a Ucrânia numa posição mais frágil, mas pode criar condições para que haja, de fato, a negociação de um acordo de paz, possivelmente com a cessão de uma parte do território do leste ucraniano para a Rússia. No entanto, não deve ser nada de imediato. Estamos falando de um horizonte temporal de alguns meses para que a negociação seja concluída.”
Confira outras análises da professora do Departamento de Relações Internacionais da PUC Minas, Raquel Gontijo:
Balanço de forças
Sobre a dinâmica de forças, a Rússia tem tecnologias muito avançadas, arsenais muito robustos e forças armadas muito preparadas. Já a Ucrânia está ficando desgastada, porque atualmente depende muito do fornecimento de apoio em termos de equipamentos e assistência técnica de outros países. Inclusive, os Estados Unidos já estão mudando a sua posição. Então agora vai haver maior necessidade de um posicionamento mais enfático por parte dos países europeus para a Ucrânia conseguir manter a sua posição.
A Rússia também teve um desgaste militar ao longo desses anos. Isso é inegável, mas a gente tem que lembrar que a guerra acontece majoritariamente no território ucraniano. Então, o saldo negativo é sem dúvida muito maior para a Ucrânia. A gente está falando de um país devastado pela guerra, de cidadãos que têm as suas vidas impactadas por essa dinâmica do conflito com alerta de bombardeio, cidades destruídas, logística de abastecimento impactada, enquanto a Rússia, para a maior parte dos russos, continua funcionando tranquilamente.
A economia russa foi impactada pelas sanções econômicas e existe um certo isolamento político, mas esse isolamento não é tão grande assim. O país continua participando de muitos fóruns internacionais, Putin segue tendo contato com os chefes de Estado de muitos países, continua tendo relações comerciais significativas com muitas nações, inclusive com a China, que é uma das maiores economias do mundo. Então do ponto de vista desse saldo, sem dúvida ele é muito mais negativo para a Ucrânia do que para a Rússia, ainda que, como em toda a guerra, os dois tenham sido certamente impactados.
Guerra nuclear
Esse conflito em nenhum momento escalou para uma guerra nuclear, mas a gente nunca pode esquecer que a Rússia é uma potência nuclear e a Ucrânia não. Então essa é uma variável sempre presente no cálculo estratégico dos líderes envolvidos, porque se a Rússia perceber que os seus objetivos mais vitais e estratégicos estão ameaçados, esta é uma carta que pode ser colocada na mesa a qualquer momento. Não parece ser o caso agora, não parece que a anexação de todo o território da Ucrânia seja algo tão prioritário que levasse a Rússia a usar armas nucleares. Aliás, a gente está caminhando muito mais para um acordo de cessão de parte do território da Ucrânia do que de dominação da Ucrânia como um todo, mas essa é uma uma variável sempre relevante.
Impactos econômicos para o mundo
Quando a guerra começou, os impactos foram muito abruptos porque tivemos a imposição de sanções econômicas. Na época, houve a suspensão de algumas formas de comércio com a Rússia. O Brasil, inclusive, teve uma posição um pouco enfática na imposição dessas sanções. Isso não foi exclusivo do Bolsonaro. Lula também teve uma postura de não aderir tão intensamente às sanções contra a Rússia. Mas o início do conflito gerou uma disrupção em muitos processos, inclusive do ponto de vista logístico. Então, muitas empresas de transporte naval, por exemplo, se recusavam a atuar no território russo por medo de que os navios fossem atacados. O custo de segurar esse transporte passou a ser muito proibitivo. Mas três anos depois, esses gastos que ainda existem, por exemplo, de segurança das rotas comerciais, já foram absorvidos e equilibrados. Então o mercado hoje, digamos assim, já teve um tempo para adaptação.
A gente pode pensar nas relações de abastecimento de energia, principalmente para a Europa, que teve que repensar algumas escolhas da sua matriz energética por conta da dependência do fornecimento do gás e petróleo russo. Esse fornecimento permanece, inclusive, é uma moeda de barganha das duas partes. Por um lado, a Rússia depende muito economicamente da exportação de gás e petróleo, por outro lado, alguns países europeus dependem do abastecimento de gás e petróleo da Rússia. Então essa é uma moeda de barganha dos dois lados.
Reflexos políticos
Do ponto de vista político, talvez nesses três anos, um dos impactos duradouros que a gente observa é uma fragilização das estruturas de cooperação e de governança internacional, pensando aqui nos fóruns multilaterais e no papel da ONU. Houve muita crítica a respeito da atuação da ONU, que questionava a capacidade da organização de responder e pressionar a Rússia. São fragilidades que sempre existiram desde a origem da ONU, em 1945, mas que ficaram muito evidentes nesses últimos anos. O Tribunal Penal Internacional também emitiu mandados de prisão para algumas pessoas envolvidas no esforço de guerra da Rússia, e esses mandados foram completamente ignorados e não surtiram efeito prático. Então as instituições internacionais estão fragilizadas. E aí, claro, dentro de um contexto muito mais amplo, que não é só da guerra da Ucrânia, mas também da presidência do Trump, da disputa de ascensão da China frente aos Estados Unidos, uma percepção de muitos países que têm tido ascensão de governos de extrema-direita - que tendem mais a descredibilizar as instituições multilaterais - tudo isso contribui também.
Saldo segundo a ONU
O Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur) estima que desde o início da guerra 10,6 milhões de ucranianos estão deslocados – quase um quarto da população do país antes do conflito. Somente nos últimos seis meses, mais de 200 mil pessoas foram forçadas a deixar suas casas no leste da Ucrânia devido ao aumento dos ataques. Ainda conforme a Agência da ONU, mais de 2 milhões de residências ucranianas – 10% do total habitacional – foram danificadas ou destruídas.
Outro ponto de atenção destacado pela Acnur é o impacto na saúde mental que tem sido profundo, com a constante ameaça de mísseis e drones, longos períodos de separação familiar e traumas acumulados. Segundo a agência, as crianças são especialmente vulneráveis, com 1,5 milhão delas em risco de sofrer consequências psicológicas de longo prazo. Dentro da Ucrânia, 12,7 milhões de pessoas – um terço da população atual – precisam de assistência humanitária.