Havia passado pouco menos de quatro meses da eleição quando o papa Francisco foi à ilha de Lampedusa, no Mediterrâneo, em julho de 2013, rezar pelos migrantes e pelos mortos nas travessias. Nela, proferiu a homilia que o acompanharia por todo o seu papado: “Neste mundo da globalização, caímos na globalização da indiferença. Habituamo-nos ao sofrimento do outro, não nos diz respeito, não nos interessa, não é responsabilidade nossa!”. Uma indiferença que nunca contagiou o jesuíta, que, 12 anos depois, hospitalizado, rebateu o vice-presidente dos EUA, JD Vance, que apelou a santo Agostinho para justificar a deportação em massa de migrantes.

Basta lembrar a história de como Moisés conduziu por 40 anos o povo hebreu do Egito à terra prometida para entender como travessias de expatriados são simbólicas para o cristianismo. Mas, para Jorge Mario Bergoglio, também era uma questão pessoal. Seus avós paternos também eram migrantes, que, por um golpe do destino, perderam o embarque no navio Principessa Mafalda, em 1927, e se salvaram do naufrágio que matou 350 italianos a caminho da Argentina.

Crise migratória

Em seu primeiro ano de papado, o mundo mergulhava na mais grave crise migratória do século XXI. No terceiro ano da Guerra Civil Síria, o Estado Islâmico avançava para a construção do califado no Levante (região entre Síria e Iraque), que contribuiu significativamente para a expatriação de quase 250 milhões de pessoas em todo o planeta; destes, 11,7 milhões de refugiados, dos quais cerca de mil morreram na travessia do mar Mediterrâneo – número que saltou para 3.286 no ano seguinte, atingindo o pico de 5.136 em 2016. 

Do outro lado do oceano Atlântico, uma nova crise emergia, com a promessa do então candidato a presidente Donald Trump de construir um muro entre EUA e México, onde 408 mil pessoas foram detidas somente em 2016. “Uma pessoa que pensa apenas em construir muros, onde quer que seja, e não em construir pontes, não é um cristão. Isso não está no Evangelho”, afirmou o papa Francisco na ocasião. E, novamente, celebrou uma histórica missa, em Ciudad Juarez, diante de centenas de milhares de migrantes latinos.

Hostilidades a Francisco

A defesa do migrante, contudo, rendeu hostilidades a Francisco. Tanto na esfera política quanto na ala conservadora do Vaticano foi acusado de negligenciar a herança cristã europeia em favor do islã. Assim foi interpretada sua declaração, em 2015, “se meu amigo diz um palavrão sobre a minha mãe, pode esperar um soco”, ao defender limites à liberdade de expressão no episódio da capa do semanário “Charlie Hebdo” ironizando o profeta Maomé (e que deu origem ao atentado terrorista contra a redação do impresso que deixou 12 mortos). Bem como o histórico encontro, no ano seguinte, com o imã Ahmed al-Tayeb, líder máximo dos sunitas, apaziguando dez anos de tensões após as críticas de Bento XVI ao Islã, na ocasião do atentado contra a igreja copta de Alexandria que deixou 21 mortos em 2006. Situação que inspirou a resposta de Trump à crítica do papa sobre o muro mexicano, afirmando que, se o Vaticano fosse atacado pelo Estado Islâmico, ele gostaria que o presidente dos EUA fosse ele.

Quis a providência divina ou o rearranjo das forças no sistema internacional que o agravamento da saúde do papa coincidisse com a retomada do sentimento anti-imigrante no mundo. Quando a artrose e os efeitos da bronquite eram visíveis nas aparições públicas de Francisco, a Comissão Europeia discutia em Bruxelas leis mais duras prevendo a expulsão de migrantes, com o apoio de países de vários espectros políticos, como Áustria, Holanda, França, Alemanha e Espanha. Em campanha para voltar à Casa Branca, Donald Trump anunciava sua política de tolerância zero aos migrantes, ameaçando até uma legalmente questionável devolução de filhos de estrangeiros ilegais mesmo quando nascidos nos EUA.

Capacidade de chorar pelo outro

Em 2024, com 304 milhões de expatriados, o equivalente a 3,7% da população do planeta, e mais de 63 mil mortos desde 2013, o papa manteve empedernida defesa dos migrantes, proferindo a catequese “Mar e Deserto”, na qual afirmava que a recusa de ajuda a eles é pecado grave.

Para Bergoglio, com a globalização da indiferença, a sociedade havia esquecido a capacidade de padecer e a de chorar pelo outro. Hoje, sem o papa Francisco, o mundo tem a oportunidade de novamente chorar e, em honra a ele, quem sabe, abandonar de vez a indiferença. (Frederico Duboc é editor de Opinião em O TEMPO e mestre em Relações Internacionais pela PUC Minas)