Entrevista

'A legalização da maconha no Uruguai ainda não terminou'

Christian Müller, jornalista uruguaio, ex-editor do semanário “Busqueda e colaborador da Deutsche Welle e do VICE News

Por Fábio Corrêa*
Publicado em 16 de abril de 2017 | 03:00
 
 
 
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BERLIM, ALEMANHA. Jornalista uruguaio prepara livro sobre o processo de legalização da maconha no país. Radicado em Berlim, na Alemanha, ele questiona a interpretação da imprensa sobre a fala do diretor Nacional de Polícia do Uruguai, Mario Layera, que tornar a cannabis legal não diminuiu o tráfico no país.

Ex-editor do semanário “Busqueda” e colaborador da Deutsche Welle e do Vice News, o jornalista uruguaio Christian Müller prepara um livro sobre o processo da legalização da maconha em seu país, mas espera a última fase da regulamentação para publicá-lo: a venda da cannabis em farmácias, processo que deverá começar em julho, segundo anunciado neste mês.

Antes da lei atual, como era tratada a questão da maconha pela legislação e pela sociedade uruguaia?

O Uruguai sempre foi um país bastante tolerante. A lei de drogas anterior à atual, de 1974 – do começo da ditadura militar – penalizava a posse, o tráfico, a produção, mas não o consumo. Ou seja, estava permitido consumir maconha, mas proibido adquiri-la, o que era uma contradição. Além disso, houve uma confluência de fatores que possibilitaram a legalização. Primeiro, os grupos militantes canábicos, por volta de 2007, começaram a organizar grandes marchas pela legalização. Segundo, o Uruguai já era um país no qual, principalmente depois dos anos 90, o uso de maconha em locais públicos era tolerado. Claro, ocorriam casos de “racial profiling” – se fosse de uma classe social inferior ou pela cor de pele, teria mais chances de acabar na delegacia. Porém, na realidade, se você fumasse na rua, ninguém tinha o direito de te dizer nada. Legalmente, podiam revistar e, no caso de encontrarem uma quantidade, essa pessoa poderia ser levada a um juiz, que decidiria se era tráfico ou consumo pessoal.

Como foi que, do lado político, surgiu o projeto de lei para a legalização da maconha?

A partir de 2012, o governo de José Mujica (2010 a 2015) enfrentou uma crise de insegurança pública. A criminalidade não aumentou numericamente em relação a anos anteriores, mas a sensação de insegurança, sim, por causa de alguns fatos notórios. O mais impactante foi um latrocínio que foi filmado e acabou na televisão. As pessoas se escandalizaram, e isso gerou uma crise de opinião pública para o governo. Assim, Mujica decide formar um gabinete de segurança com os ministros do Interior, Defesa e outros para tomar medidas. E dentro desse gabinete surge a ideia de legalizar a cannabis. Essa ideia era respaldada muito pelo então ministro de Defesa, Eleuterio Fernández Huidobro, companheiro de Mujica da época da guerrilha.

Houve alguma dificuldade na aprovação? Como a oposição ao governo do Mujica lidou com o tema?

Primeiro, se formou uma comissão que começou a discutir a legalização. Estava claro que a Frente Ampla, os governistas, estavam a favor, e a oposição, contra. O que acontece é que os governistas tinham mais da metade da maioria no Parlamento, o necessário para aprovar qualquer lei. Assim, a lei foi aprovada em dezembro de 2013. Ela tipificava três vias: o cultivo próprio, o clube canábico, e a venda nas farmácias. Em agosto de 2014, se legaliza o cultivo. Poucos meses, os clubes canábicos. Com isso, o governo cumpriu a reivindicação dos ativistas, que pediam o cultivo e os clubes. O resto é uma ideia do governo de Mujica, que a princípio não queria autorizar o consumo próprio porque isso permitiria que ela (a maconha) acabasse indo para o mercado negro – o que tem acontecido, na verdade. E, em grande parte, porque não se habilitou a venda em farmácias.

Como anda o processo de legalização nas farmácias? A demora da venda pelo Estado tem impactado no mercado negro?

De todos esses três anos da lei até agora, se gerou, no Uruguai, o que se chama de “mercado cinza”. É um mercado negro feito com cannabis que provém da legalidade, em grande parte. O problema é que, claro, neste momento, há maconha legalizada só para aqueles que cultivam em suas casas e aqueles que fazem partes dos clubes, que são minoria. Quando aprovou a lei, o governo estimava cerca de 10% dos consumidores iam fazer parte de um clube ou plantar em casa. A grande maioria compraria em farmácias, porque o cultivo da cannabis não é tão fácil. Recentemente, Mario Layera, diretor nacional da polícia do Uruguai disse, numa entrevista, que o mercado negro havia crescido. Com isso, os jornais começaram a afirmar que a “legalização da maconha no Uruguai fracassou, pois cresceu o mercado negro”. Na verdade, não estão entendendo, porque ainda não se implementou a legalização da maconha no Uruguai. E isso tem a ver com essa defasagem da venda na farmácia. Não pode dizer que a lei fracassou porque todo o sistema ainda não está funcionando.

Como fica daqui para frente? Quando isso deve se concretizar?

Já existem duas empresas, que venceram uma licitação pública, cultivando maconha em um edifício público. Elas esperam apenas a liberação da venda nas farmácias. Em uma entrevista recente à Deutsche Welle em espanhol, o presidente Tabaré Vázquez se comprometeu a liberar a venda as farmácias até a metade deste ano. O que acontece é que não há mais pressão dos farmacêuticos, nem dos ativistas para que isso ocorra. Tampouco há marchas exigindo essa nova fase, da venda em farmácias. Porém, a lei já está aprovada e sancionada. Agora, Vázquez tem de fazê-la valer. A partir daí, podemos saber os impactos dessa lei. Os efeitos disso, no entanto, não vão ser notados em um ano, mas em médio prazo, cinco anos por exemplo. Aí poderemos dizer se foram negativos ou positivos.

*Bolsista do programa para jornalistas latino-americanos da fundação IJP

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