Hoje: Dia das Mães. Nunca falhei em telefonar para a minha, mas neste 13 de maio de 2018 não ligarei.
Apenas enviarei meu agradecimento eterno, por ter-me dado vida e ter cuidado de mim nos primeiros anos da minha existência, pelos bons exemplos numa casa simples, gelada durante o inverno, e com pomar, horta e galinheiros em volta na década de 50, quando, apesar de ter acabado a Segunda Guerra Mundial, ainda sobreviviam as terríveis consequências numa Itália devastada.
O “tinello” da casa de Vicofertile – aldeia que há séculos é palco da minha família – era o melhor ponto de encontro. O tinello é algo um pouco mais elegante que uma copa e menos que uma sala de jantar, poderia ser considerado a sala de jantar íntima.
Paredes impregnadas de contos de meu pai, que ficou durante a Segunda Guerra nos Montes Bálcãs, como soldado, mais precisamente entre Albânia e Grécia. Ele atuava nos setores de construção de pontes, de abastecimento e manutenção. Assim teve, dizia ele, o privilégio de não ter atirado em ninguém.
Escutei incontáveis relatos de episódios de uma longa guerra. Até da fuga dele com alguns outros presos de guerra, antes de embarcar num trem que os levaria para um campo de concentração na Alemanha. Outros casos, como o de um tio de meu pai, metralhado por um avião alemão num voo rasante quando, de bicicleta, carregava o filho na garupa. Ambos lembrados com duas cruzes na estrada a poucos metros da nossa casa.
As histórias prendiam minha atenção e alimentavam pesadelos, como aquela de um tio, irmão de minha mãe, que voltou da Rússia a pé em pleno inverno e chegou à casa dos pais irreconhecível até para a mãe. Magérrimo e imundo, tinha-se escondido no fundo de uma pocilga por semanas, único esconderijo para os alemães que caçavam os soldados italianos em 1944.
Minha mãe casou-se nas brumas de 1947 e passou a viver na casa da família de meu pai. Simples, mas bem vasta, construída em pedras por meu bisavô entre 1905 e 1908, destinada a abrigar seus oito filhos, quatro homens e quatro mulheres. A casa levou o nome de “Palazzetto di Vicofertile” (“pequeno palácio”), nasceu originalmente com vocação de “república familiar” com uma imensa cozinha, adega, poços, quartos de domésticas e uma galeria subterrânea.
Cento e dez anos depois de abrigar muitas vidas, sofre de um silêncio imperturbado: minha mãe abandonou a cena em 13 de dezembro último, cinco meses atrás, dia de santa Lúcia. Aniversário de seu filho caçula, a quem deu à luz deitada na mesa de cozinha, em 1954. Ela, última supérstite de uma geração que se apagou ao nascer no primeiro quarto do século XX para viver a juventude entre guerras e muitos extermínios.
Uma casa, que era pequena para tanta gente, se transformou em enorme para ela. Um lar que viveu memoráveis almoços, festas, assistiu às brincadeiras de enxames de meninos, correndo pelos corredores, se jogando pelas escadas abaixo, escalando árvores, inventando diversões e jogos, numa época em que a televisão não existia e apenas o gramofone a manivela tocava discos de vinil de Begnamino Gigli e Enrico Caruso.
Nessa casa as domésticas me carregavam no colo treinando as danças das tardes de domingo com os namorados, me chamando de Fernando, Paolo, Antenore.
A casa agora tem um gramado bem-cuidado, aboliu as criações de galinhas, patos e coelhos do pós-guerra, minha mãe a enfeitou de roseiras, ervas medicinais e aromáticas, enormes moitas de alecrins, árvores decorativas e frutíferas. No jardim sobra da época da minha infância uma alameda de avelãs, que serviam para dar gosto aos bolos de farinha.
Ainda existem dois cedros gigantescos e um pinheiro, que era e é o meu mais amado. Creio que a sobrevivência surpreendente dele se deve a esse sentimento. Nos galhos dele, bem no alto, criei, quando menino, um assento de onde vigiava sem ser visto. Refúgio nos momentos de lágrimas, consolador nas derrotas, “meu amigo” que tudo escutava e compreendia. Está lá, bonito, impávido, protetor, apesar de tudo, testemunha imparcial.
Minha mãe chegou ao “Palazzetto” em dezembro de 1947, com 25 anos, linda, de olhos verdes, depois de uma lua de mel de três dias viajando de trem até a cidade/porto de La Spezia, que distava 110 km. Lá viu o mar pela primeira vez, assistiu a seu primeiro jogo de futebol, do time de Parma, com meu pai, fanático torcedor.
Ela me contou que as minhas duas tias, irmãs de meu pai, nascidas e criadas naquela casa, não a viam com bons olhos. Elas, de famílias com brasão e um passado glorioso, ela, filha de um gerente de fazenda, homem do campo. Ela teve, entretanto, a sorte de ser criada na família de um nobre parmense, casado com uma também nobre dama húngara.
A “condessa” ajudou a criá-la e deu-lhe ensinamento. Transformou-se na secretária e tratava das compras e das vendas dos domínios agrícolas da família, coisa que os nobres da época abominavam. Numa dessas ocasiões conheceu meu pai, comprador de trigo no moinho da família Medioli, e aí, depois de fechar a compra da safra inteira da condessa, acertaram se casar em 90 dias.
Na década de 50, quando eu cheguei ao mundo, a escassez de alimentos fazia limpar os pratos com miolo de pão, raspar o fundo das panelas, catar as migalhas com a lâmina da faca. Escasseava até lenha para aquecer água e aquecer no fogão as panelas. Eletricidade era suficiente apenas para as trêmulas lâmpadas que piscavam, o gás não existia, e o carvão não se encaixava no orçamento familiar. O jantar no inverno era servido às 18h30, no verão às 19h, depois os adultos jogavam baralho, briscola, tresette, canastra. Meu pai era quase imbatível. Para as crianças, já exaustas, alguém lia um conto de fadas. Às 20h30, todos na cama, algumas leituras, e às 21h todos dormiam.
Minha mãe já em 1948 rapidamente tomou conta de todas as tarefas do lar, ela chamava o médico de família, aplicava injeções, preparava chás e tratava da administração, da horta, das duas domésticas, das compras. Chamava até uma curandeira para tratar de machucados. Invocava santa Lúcia e outros santos especiais nos momentos de doenças.
Era ela a preparar almoços inspirados na tradição culinária de Parma. Jantares especiais aos sábados e almoços de domingos, ceias de Natal e comemoração da Páscoa meticulosamente, com dias de antecedência, usando receitas herdadas, como tortelli di erbette, agnolini, torta pasqualina e panettone.
Preparava os enfeites de mesa, vasos de flores, plantas exóticas, canteiros de rosas, violetas africanas, lavandas, tulipas, hortênsias. Fazia das cores e dos perfumes naturais, das cortinas bordadas um ambiente acolhedor para os visitantes.
No verão preparava em grande panelas de cobre geleias de cerejas e de ameixas, licores de nozes e de sementes de maçã, enquanto meu pai cuidava dos vinhos de uva. Isso durante fins de semana memoráveis, de casa cheia de voluntários gratificados com algumas garrafas de “lambrusco” e “moscato”. A uva era esmagada com os pés calejados dos voluntários numa calha de carvalho.
Minha mãe era a rainha da casa, dava-lhe harmonia. Nos últimos anos resistiu bravamente a cuidar das roseiras, do alecrim, do manjericão, da sálvia e a preparar os pratos preferidos de cada filho para recebê-lo. Dava notícia de todos os primos e parentes, dos descendentes de Vincenzo que migraram para Canadá, Chile, França, Alemanha, Austrália, Estados Unidos. Ela abastecia de fotos e lembranças dos bisavós e dos anteriores a eles.
Nos últimos anos, nas paredes do tinello e sobre os móveis, as fotos dos filhos, dos netos e bisnetos em molduras prateadas e douradas. O Brasil tinha um espaço especial, para ela era uma terra abençoada, que visitou até 1990. O time de vôlei campeão do mundo, algo inacreditável. Perguntava-me: “Como você conseguiu, meu filho?”. Ainda perguntava: “Você não cansa com tanto trabalho?” e aconselhava: “Minha criança, cuida mais de você…”
Ela faltou na noite de santa Lúcia, aniversário do filho caçula e da santa que ela tanto solicitava.
Chamava-me de “bel homem”, “bel musê”, sempre me tratou com o carinho da criança dos anos 50. Deixou um testamento de uma lauda em perfeita caligrafia, agradecendo todas as satisfações que os três filhos lhe deram. A vida dela, concluiu que “valeu” e pediu encarecidamente: “Perdoem! Nunca se arrependerão de perdoar”.
Para saber o real valor das pessoas, infelizmente, é preciso perdê-las.
A todos desejo, nesta data, que aproveitem e festejem este dia com a sua mãe ou em silêncio, lembrando-se dela.
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