Já posso ter escrito sobre este episódio. Mas no momento vale repetir.
Era agosto de 1955 quando um incêndio de grandes proporções comoveu a população de Minas Gerais. As instalações de um frigorífico, a Frimisa, localizadas em Santa Luzia, haviam sido consumidas pelo fogo. Tratava-se de um empreendimento do Estado de Minas Gerais, promovido pelo governador Juscelino Kubitschek, que poderia se tornar a maior indústria processadora de carnes da América Latina.
Tudo indicava que o incêndio era criminoso. Havia suspeita do dedo de multinacionais da carne na motivação daquela ocorrência. Eu tinha pouco mais de 11 anos, mas aquele evento ficou marcado, de forma indelével, em minha memória. Meu pai era o juiz da comarca de Santa Luzia, e o caso, forçosamente, iria parar em suas mãos.
A polícia, desde logo, prendeu um vigia do terreno: era um negro forte que parecia ter algum tipo de deficiência mental. Começou a apanhar tanto dos policiais para que confessasse quem era o mandante do incêndio que, para a surpresa de todos, meu pai, o juiz de direito que decretara a prisão preventiva do suspeito, mandou que ele fosse conduzido para nossa residência, na rua Direita, onde ficaria sob sua custódia pessoal. Após muito meditar, havia chegado à conclusão de que o único local efetivamente seguro, onde a incolumidade do presumível meliante poderia ser resguardada, era sua própria moradia.
A casa era modesta. Juízes ganhavam pouco naquele tempo, e obviamente não existia o hoje tão execrado, e a meu ver inconstitucional, auxílio-moradia. Mas havia um cômodo que servia então como escritório de meu pai. A área foi isolada para que o indiciado ali ficasse. Minha mãe levava-lhe o café da manhã, almoço, lanche e jantar. Suas idas a um banheiro eram controladas por um oficial de Justiça e por um ou outro policial militar.
A cidade ficou simplesmente em polvorosa. Aqui e acolá ouvia-se: “O juiz enlouqueceu! Como pode levar para sua própria casa um facínora? E ainda mais com duas meninas em casa?” As meninas, no caso, eram minha irmã menor e eu.
Não sei quais foram os desdobramentos dessa história. Só sei que, enquanto estivemos em Santa Luzia, nada de mau aconteceu ao tal vigia da Frimisa. Meu pai acabou não lidando com o processo penal relativo ao caso. É que, pouco tempo depois, seria transferido para a comarca de Diamantina, para onde, portanto, todos nós, os membros de sua família, também nos mudaríamos. Muitos anos depois, voltei a viver em Santa Luzia.
Todas as vezes que alguém cuidava de comentar com meu pai aquele seu ato “tresloucado”, ele simplesmente respondia: “A dignidade humana é intangível. Toda pessoa tem direito a sua incolumidade física. Toda pessoa tem direito a um julgamento justo, inclusive os facínoras”.
Nestes tempos, em que quem propaga a máxima “bandido bom é bandido morto” é forte candidato ao sucesso na política, tenho me lembrado muito do velho Bené, meu pai, sempre intransigente quando se cuidava de levar em conta que todo ser humano deve ser tratado de forma digna.