O autor de “Grande Sertão: Veredas” tomou posse na Academia Brasileira de Letras no dia 16 de novembro de 1967 e morreu no dia 19, três dias depois, provocando um verdadeiro tsunami emocional no mundo literário.
No dia 18, apenas um dia antes da morte súbita, GRosa foi homenageado pelo editor José Olympio com um jantar no restaurante Lamas, frequentado por intelectuais, políticos e boa parte da classe média boêmia de Laranjeiras, Catete, Flamengo e Cosme Velho. Reservada uma semana antes, a mesa era grande. Numa das cabeceiras, o editor e anfitrião. Na outra, o homenageado. Entre os convidados, Juscelino Kubitschek, Manoel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Cyro dos Anjos, Oscar Niemeyer, Rachel de Queiroz e Clarice Lispector. Ao todo, 13 pessoas, quase uma paródia da ceia de Cristo com os 12 apóstolos, costume que Zé Olympio repetia em todos os jantares oferecidos a autores de sua casa editorial.
JUSCELINO E CLARICE
Quando chegou, o ex-presidente JK não estava nem um pouco sóbrio. Ao ser apresentado à escritora Clarice Lispector, declarou alegremente:
– É uma honra conhecer a grande autora de “A Maçã Escura”! Quero que saiba de minha grande admiração por sua obra.
Manoel Bandeira não conteve uma risadinha, no que foi acompanhado por Oscar Niemeyer e Cyro dos Anjos. Clarice, desconcertada, tentou libertar a mão, que Juscelino insistia em apertar. Fixando Juscelino, os fascinantes olhos amendoados faiscando, disse baixo, mas suficientemente alto para que todos ouvissem:
– O título não é “A Maçã Escura”, mas “A Maçã no Escuro”.
– Eu sei, minha linda e doce Clarice – disse Juscelino, depois de uma de suas gargalhadas típicas. – Eu estava apenas brincando. Como poderia esquecer o título de um livro tão importante para as letras nacionais?
DOIS POETAS SE DIVERTEM
– É o maior cara de pau que já conheci – disse Drummond ao ouvido de Manoel Bandeira. – Sempre foi assim, nunca deixará de ser assim. Nasceu galanteador e morrerá galanteador. Na presidência da República ou fora dela.
Bandeira mostrou os grandes dentes de roedor em outra risadinha. Também já estava bastante tocado, freguês antigo da ótima bagaceira servida no Lamas.
– Você não está com ciúme, está, Carlos?
O grande poeta mineiro olhou em volta, deu uma bicada no copinho de cachaça Havana – uma delícia! –, exclusividade da casa no Rio, e sussurrou novamente, bem sério, junto ao ouvido do grande poeta pernambucano:
– Ciúme, não, Manu. Estou é com inveja mesmo. E se Clarice cai na dele?
DUAS DAMAS SE ENFRENTAM
– Um brinde, meus amigos, um brinde inicial – gritou da cabeceira Zé Olympio. – Um brinde à grande dama da literatura brasileira! – E ergueu a taça.
Ninguém entendeu. Estavam presentes duas ilustres escritoras: Rachel de Queiroz e Clarice Lispector. A qual delas se referia o editor?
– Lá vem o Zé botando lenha na fogueira – disse Cyro dos Anjos a Oscar Niemeyer, sentado a seu lado. – Em todo jantar ele faz isso. Costuma até dar briga.
Bandeira bebericou sua bagaceira e aplaudiu:
– Um brinde, sim. Viva Rachel!
Juscelino não gostou, revidando no ato e erguendo seu copo de uísque:
– Que Rachel que nada. Viva Clarice!
José Olympio soltou sua imensa gargalhada e bebeu um gole de vinho. Era isso que seu sapo queria. Ver o circo pegar fogo. E agora?
Clarice e Rachel se olharam. Seus olhos fuzilavam.
OS REVOLUCIONÁRIOS
– Proponho outro brinde – apressou-se mineiramente Drummond. – Ao nosso ilustre visitante Oscar Niemeyer, que veio de Paris, onde se exilou, apenas para a posse de Rosa na academia. Viva Oscar!
– Viva Oscar! – repetiram todos, exceto as duas escritoras, que continuavam a se encarar que nem galinhas chochas.
– Meninas, meninas! – intimou Zé Olympio de sua olímpica cabeceira. – Façam o favor de vir aqui, as duas.
Mal elas começaram a andar, ouviu-se a palavra de ordem de Niemeyer, comunista da velha guarda, que não perdeu a ocasião para um brinde especial:
– Abaixo a ditadura! O povo unido jamais será vencido!
Todos repetiram, entusiasmados:
– Abaixo a ditadura! O povo unido jamais será vencido!
Um coronel do exército, que jantava com a família, mal podia acreditar no que via e ouvia. Pensou em telefonar e pedir um camburão, mas foi só um instante. Não, não valia a pena mexer com aquela gente. Pediu a conta, pagou, e se mandou.
PANOS QUENTES
Durou pouco a rebelião. Ergueram um último brinde à democracia.
– Viva a democracia! – gritaram. – Viva a democracia!
Enquanto isso, Clarice e Rachel se aproximaram do editor. Zé Olympio, mais alegre do que nunca, e também bastante bêbado, desculpou-se:
– Eu estava brincando, minhas queridas. Foi só uma brincadeira boba!
Enquanto isso, o coro puxado por Cyro dos Anjos, completamente chapado, passou a entoar, cada vez mais alto, enquanto GRosa ria, feliz da vida:
– Joãozito é bom companheiro-ô... Joãozito é bom companheiro-ô... Joãozito é bom companheiro-ôôô... Joãozito é bom companheiro!
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O jantar de José Olympio em homenagem a Guimarães Rosa
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