O ano: 2024. Exatos 136 anos depois de ter sido abolida a escravidão no Brasil. Neste país onde muitos dizem não existir racismo porque “somos todos iguais”, vaza o seguinte diálogo: “Empregada do cabelo duro. Você gosta de cabelo duro? Não sabia que você gostava de mina com cabelo duro. Você gosta de mina com cabelo duro? Cabelo duro você gosta? Você gosta de mina de cabelo duro, de neguinha? Porque isso aí é neguinha, né. Alguém ali, o pai ou a mãe, veio da África”. A fala é da modelo Ana Paula Minerato, e a vítima é a cantora Ananda, do grupo Melanina Carioca.

Eu sei que praticamente todo mundo já ouviu esse áudio, mas eu não acho que o assunto deva morrer enquanto não houver prisão. A lei brasileira determina que racismo é crime, certo? Então, regra é regra. Sim, sabemos que existem brechas na legislação e quanto a cor branca pode dar imunidade para certos crimes em um país racista como o Brasil. Então, até que a justiça seja feita, ou não, vamos pelo menos conversar sobre o tema.

Primeiro: eu acho incrível uma brasileira encher a boca para dizer “Alguém ali, o pai ou a mãe, veio da África”. Eu conto para ela ou alguém mais conta a história do Brasil e da formação da nossa sociedade? Vou deixar no ar como um estímulo à busca por esse conhecimento por conta própria, já que nossas escolas ainda se pautam por uma educação tão eurocentrada (com a Europa como o elemento central para a constituição da sociedade). De tanto estudar o nosso país pelo ponto de vista do colonizador, muitos brasileiros não se sentem ex-colonos e se colocam como alguém distante das culturas fundantes do país. Falam mal da África enquanto desfrutam de ganhos culturais, sociais e econômicos apenas existentes por aqui em função da vinda de pessoas negras para o Brasil. Isso sem citar que a agressora em questão desfila em escola de samba. De novo: eu conto para ela ou alguém me ajuda com isso? E não é ironia, não. É cansaço mesmo que me leva a perguntar isso.

Cansa ter que debater se chamar alguém de “neguinha do cabelo duro” é ofensivo o suficiente para ser considerado crime. Cansa ver pessoas tendo mais piedade da agressora (que se diz vítima de um relacionamento abusivo) do que da pessoa que de fato foi atacada. E aqui eu preciso abrir um parêntese: óbvio que, a distância, eu não posso concluir se ela vivia ou não um relacionamento tóxico. Mas isso não é atenuante para racismo direcionado a uma terceira pessoa. A Ananda não fez nada com a Ana Paula. A própria Ana Paula disse em vídeo que atacou alguém que ela sequer conhecia.

Outra questão que chama a atenção nesse episódio é como, ao menor sinal de ter um privilégio qualquer colocado em xeque, quem é racista se desmascara. Ela nitidamente se irritou por achar um absurdo o ex-namorado supostamente se interessar por uma mulher negra, com cabelo natural. Se ele estivesse se relacionando com alguém parecido com ela, talvez o incômodo fosse menor. Isso tem nome: preconceito estético. O termo é muito bem desenvolvido no livro “Racismo Estético” do pesquisador João Xavier. Eu tive a honra de receber um exemplar e indico para quem quiser se aprofundar no tema. Em um dos trechos, ele afirma: “A estética colonial não celebra a diversidade, mas impõe um ideal que marginaliza o que é nativo, o que é negro, o que é indígena”.

E, usando como referência essa análise dele, eu pergunto a vocês: até quando vamos aceitar os nativos, ou seja, o povo brasileiro, ser excluído dentro do Brasil? O que é preciso fazer para que metade da população possa se sentir finalmente em casa no país onde nasceu?

Eu sei que isso não é novidade, mas não custa lembrar que nós, negros, não estamos no Brasil por escolha dos nossos antepassados. Nós estamos aqui porque nossos ancestrais foram violentamente tirados de seus lares, explorados e humilhados para formar esta nação. E é inadmissível que esta mesma terra ainda seja tão hostil com o povo que a ergueu. Apenas pensem. Somos todos colonos.