Artigo

Ah, aquele menino ressabiado...encantado!

Escola não pode ser sonho distante para crianças e jovens analfabetos

Por Jacqueline Caixeta
Publicado em 21 de maio de 2022 | 03:00
 
 
 
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Ele vem todas as manhãs, entre 6h30 e 7h, quando fico recebendo meus alunos na porta do colégio em que trabalho. Seu olhar tem um misto de ressabiado com encantado. Passa bem devagar, quase querendo parar. E num é que numa manhã dessas, ele tomou coragem e parou?

Parou e quase desistiu. Aí, já desconfiada de que ele queria saber algo, perguntei logo o que ele queria saber, antes que sua timidez o devolvesse para seu destino de toda manhã. Um pouco inseguro, subiu as escadas e com olhar brilhando me perguntou se para entrar naquela escola era preciso saber ler.

Perguntei a sua idade. Dez anos. Aquela resposta me doeu tanto, tanto que desde o episódio não paro de pensar naquela criança que se atreveu a subir as escadas, algo que ele devia estar ensaiando por dias, e se arriscar em uma nova aventura.

A dor veio acompanhada de uma eterna raiva. A raiva que tenho ao ver crianças e adolescentes analfabetos em pleno século XXI. Me revolta a escola não ter dado conta disso, me incomoda como o sistema educacional é cruel e estratificador. Por que a educação, que deveria ser de acesso a todos, ainda é tão elitista?

Lógico que uma criança de dez anos que não foi alfabetizada pode ter outros aspectos de seu desenvolvimento cognitivo, emocional, biológico, social, mas o sistema educacional é de grande responsabilidade. Vejo crianças e adolescentes caminhando no escuro, sim, no escuro, porque quando não se sabe ler e escrever, caminha-se no escuro. Uma escuridão que dói na pele de quem se sente acorrentado pelo resto da vida à ignorância, tendo suas chances de uma vida mais digna desaparecendo a cada porta que se fecha.

Muitas vezes a educação é a grande culpada por produzir tantos analfabetos. Com a sua incompetência de gestão democrática, devolve pra rua aqueles que apresentam um pouco mais de dificuldade. As verbas públicas são distribuídas, mas a incompetência de gerir os recursos, não deixa que projetos sérios de alfabetização cheguem às salas de aula.

Quantos meninos terão que andar por aí, namorando lindas escolas e sonhando em entrar? Quantos terão que desistir porque não encontram em suas escolas profissionais que se incomodam com suas dificuldades e trazem para si o desafio de alfabetizar quem não está dentro do padrão de aluno perfeito? Quantas crianças e adolescentes terão que lutar pelo direito de serem alfabetizados, mesmo em idade tardia porque na época própria não se depararam com educadores de verdade.

Em tempos que se fala tanto em tecnologia, tantas crianças e adolescentes com acesso à internet, metodologias ativas, saber que existem crianças analfabetas aos dez anos de idade, é um absurdo tão grande que não tem como não trazer para uma discussão urgente a alfabetização no Brasil. Quanta controvérsia! Quanta estratificação social!

Até quando os educadores que ocupam lugares privilegiados de discussão de políticas públicas voltadas para a educação vão continuar fazendo de conta que não é com eles? Até quando jogarão na mídia estatísticas falsas sobre a alfabetização no Brasil?

Alguns cargos de gestão na educação pública, são ocupados por teóricos que nunca pisaram numa sala de aula, que não possuem a competência de lidar com o processo de ensino aprendizagem, que não sabem diferenciar problemas de aprendizagem de incompetência pedagógica.

Enquanto educação pública continuar sendo apenas palanque para muitos, teremos muitas crianças namorando e sonhando com um lugar em que possam aprender. Vamos pensar a escola com mais competência! Passou da hora!

 

Jacqueline Caixeta é educadora

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