Opinião

Digressões sobre aumento de pena para alguns maus-tratos

A Constituição veda a crueldade contra todos os animais

Por Samylla Mol
Publicado em 15 de setembro de 2020 | 03:00
 
 
 
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Na semana passada, o PL 1.095/2019, que pretende alterar a Lei 9.605/1998, conhecida como Lei de Crimes Ambientais, para aumentar a pena de quem pratica maus-tratos contra cães e gatos foi aprovada no Senado. Entretanto, duas ponderações se fazem urgentes e necessárias.

O PL original previa o aumento da pena para quaisquer maus-tratos aos animais, independentemente de serem eles domésticos, silvestres e de viverem em lares ou propriedades rurais. Eis o texto original: “Altera a Lei 9.605, de 12 de fevereiro de 1998, para estabelecer pena de reclusão a quem praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos; e instituir penas para estabelecimentos comerciais ou rurais que concorrerem para a prática do crime”.

O texto não passou como proposto. Foi alterado, restringido o rol de animais contemplados na proteção almejada: apenas os maus-tratos contra cães e gatos terão a pena asseverada. Essa limitação aos pets, mais comuns nos lares e nas ruas, deve-se ao poder do agronegócio no Brasil.

Pouco importa se a Constituição Federal veda a crueldade contra animais, sem discriminar nenhum deles. Uma lei que vise à punição para quem os maltrata tem que passar pelo crivo da bancada ruralista e obviamente não pode contrariar seus interesses. Daí porque só os cães e gatos foram citados no aumento da pena.

Então, se por um lado o PL representa um avanço legislativo, por outro acoberta, de forma velada, os maus-tratos aos animais usados para alimentação, trabalho e vestiário. Bois, porcos, aves e cavalos são moeda corrente, produto de exportação, riqueza do Brasil. Quem se importa se são criados, embarcados, mortos, esfolados, chicoteados, aprisionados, desmamados à força e em situação de maus-tratos?

Costumo dizer que as leis são o reflexo da sociedade, e esta deu força ao meu argumento. Se um cão sofre e tem as patas decepadas, a sociedade chora. E quem chora pelos porcos esquartejados, pelo chicote no lombo dos burros, pela pistola na testa das vacas? Quem pensa que torresmo, sofás, bolsas e casacos são pele de bicho morto?

Em que pese a crescente mobilização em defesa dos animais, os ditos de produção ainda vivem nas sombras da nossa conveniente cegueira. Enxergá-los dará trabalho, então é melhor dissociar a carne do bicho sendo morto, a pele do bicho esfolado, o molho pardo do sangue que jorra lentamente do pescoço de galinhas degoladas.

A lei visa proteger apenas cães e gatos, e a culpa é nossa também. Amamos e defendemos uns, ignoramos conscientemente os outros.

A segunda ponderação que martela a minha mente ingenuamente incrédula é sobre a sanção presidencial. O que esperar de um cara que instituiu como Dia do Rodeio o mesmo dia em que se comemoram são Francisco e os animais? Ao fazer isso, o presidente cuspiu na cara dos protetores e de todos que acreditam no santo padroeiro dos bichos. Uma mente que é capaz de tal perversão será capaz de sancionar o PL do aumento de pena para maus-tratos a cães e gatos?

Quero estar errada. Por ora, permaneço incrédula em qualquer possibilidade de ato ético consciente vindo do digníssimo

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