Oscar Torretta é antropólogo
Existem fórmulas que, uma vez evocadas, parecem possuir poderes extraordinários. Uma delas, em relação ao conflito israelo-palestino, parece ser: “dois povos, dois Estados”. Infelizmente, a realidade é mais complexa que a máxima. Em primeiro lugar porque o pan-arabismo e, depois, o pan-islamismo nunca aceitaram um acordo com Israel. É por essa razão que vários Estados árabes ou organizações islâmicas, incluindo o Hamas, não aceitam a fórmula “dois povos, dois Estados”, ou a existência do Estado de Israel.
O recente pogrom islâmico-nazista do Hamas destacou a vontade e os objetivos dessa organização, mas não somente isso. Na verdade, também evidenciou questões que estão mais próximas de nós. Onde, por exemplo, estavam as feministas quando os terroristas do Hamas se filmaram enquanto violentavam, rasgavam as roupas, arrastavam pelos cabelos e carregavam nos carros mulheres vivas e mortas, violadas na parte inferior dos seus corpos ensanguentados?
O divórcio entre feminismo e direitos humanos já se esgotou há algum tempo: por exemplo, mesmo depois do que as mulheres sofreram no Irã, os aiatolás passaram a presidir a Comissão dos Direitos Humanos da ONU. Não resulta que muitos movimentos “civis” tenham protestado a esse respeito.
Os “opressores” são sempre os mesmos: brancos, cristãos ou judeus – mesmo que seja em uma reunião de condomínio. Não importa se estes salvem pessoas LGBT dos “oprimidos” que as penduram em candeeiros de rua, e não importa se o Hamas impõe às meninas casamentos com adultos pedófilos ou protege – e até ordena – estupros, espancamentos e sequestros.
O propósito do Hamas
Hamas é acrônimo de “Movimento de Resistência Islâmica”, no qual o termo “Palestina” ou “palestino” está ausente. O Hamas quer destruir um povo, não um Estado. Seu propósito, sancionado em seu estatuto, não é o nascimento de um Estado da Palestina, que coexista pacificamente ao lado de Israel, mas a destruição de Israel e o extermínio do povo judeu – com o “fim da entidade sionista” e a vitória da “Palestina livre do rio ao mar”, do Jordão ao Mediterrâneo.
A história da região é complexa, e nela se sucederam governantes. Recordamos romanos, turcos, alternâncias entre cristãos e muçulmanos, ingleses, franceses, iranianos etc. Aproximando-nos de nossos tempos, a história remonta ao final do século XIX, quando pouco menos de 450 mil pessoas viviam naquela terra disputada. O seu ponto de viragem ocorreu em 1948, quando, poucos meses depois da votação da ONU que sancionou uma divisão razoável entre os dois povos, vários exércitos árabes atacaram o recém-nascido Estado de Israel.
O erro primigênio, escreveu Magdi Allam em “Il Giornale”, está identificado na passagem : “... a raiz do conflito é vista na ocupação ilegal que Israel impôs à população palestina durante mais de 75 anos, por meio de uma forma de segregação racial e étnica”.
Na história, escreve Allam, “nunca existiu nem um ‘Estado da Palestina’, nem um ‘povo palestino’, nem Jerusalém sequer foi a capital da Palestina ou a cidade sagrada do islã. Palestina sempre foi o nome de um território geográfico, e não de uma entidade política. A partir do ano 135, o imperador Adriano, na Terceira Guerra Judaica, conhecida como ‘revolta de Bar Kokhba’, após o extermínio de 580 mil judeus, cancelou o nome original da terra dos judeus, que passou de Judeia para Síria Palestina. Mesmo sob o califado islâmico turco-otomano, a entidade geográfica da Palestina fazia parte do Wilayat de Beirute ou região de Beirute”.
Após a derrota do Império Otomano na Primeira Guerra Mundial, a Grã-Bretanha governaria o território por quase 30 anos. Com a Resolução 181, de 29 de novembro de 1947, as Nações Unidas decidiram dividir a Palestina em dois Estados: um árabe e um judeu. Em 1948 os britânicos deixaram aquelas terras à sua sorte. Isso atesta que em 1947 não existia o conceito político de Palestina.
Depois da proclamação do Estado de Israel, em 14 de maio de 1948, os exércitos árabes lançaram a primeira guerra contra o novo Estado. Para evitar o seu nascimento, estes teriam mesmo se oposto à criação de um novo Estado árabe. Após a derrota árabe, o território onde este último deveria ter nascido foi dividido entre Israel, Jordânia e Egito, que durante muito tempo teria ocupado e administrado a Faixa de Gaza.
De 1948 a 1967, nenhum Estado do mundo – muito menos árabe ou islâmico, nem mesmo a ONU – protestou ou censurou a anexação pela Jordânia da Cisjordânia, o território mais extenso sobre o qual deveria surgir o novo Estado árabe sancionado pela Resolução 181. A razão é simples: a população da Cisjordânia é a mesma da Transjordânia, ambas se concebem como árabes. Se realmente os Estados árabes tivessem tido no coração a causa do Estado palestino e de seu povo, ninguém teria podido impedir de o estabelecer nos territórios da Cisjordânia, Gaza e no setor oriental de Jerusalém.
Em vez disso, naquele período, a Jordânia e o Egito não pensaram minimamente em desistir dos territórios que ocupavam, simplesmente porque os concebiam como territórios árabes, com uma população árabe. Somente após a derrota esmagadora dos seus exércitos na Guerra dos Seis Dias (1967), com a perda do Sinai, da Cisjordânia, da Faixa de Gaza, de Jerusalém Oriental e das colinas de Golã, que se começou a falar sobre o povo e o Estado palestino.
A então União Soviética, por meio de ataques terroristas e dinheiro, patrocinou a Organização para a Libertação da Palestina (OLP), que foi enquadrada a partir de então como “luta dos oprimidos, embate anti-imperialista, anticolonialista, pela paz, pela autodeterminação, pela igualdade de direitos etc.”.
Os apoiadores mudaram com o tempo, o ódio permaneceu inalterado. Atualmente, por trás do Hamas estão o Irã, que os financia, a Rússia e, em certa medida, a Turquia.
Camp David
Nessa sucessão de tragédias, a história deu-nos apenas uma breve temporada de esperança. Da primeira Intifada de 1988 até as fracassadas negociações de Camp David em dezembro de 2000, quando parecia que israelenses e palestinos haviam tomado nas próprias mãos os seus destinos. Mas, como testemunham os trágicos destinos de Anwar al-Sadat e Yitzhak Rabin – ambos assassinados por extremistas religiosos –, para realmente fazer a paz, é preciso enxergar longe e ter muita coragem, prerrogativas que Yasser Arafat aparentemente demonstrou não ter.
Quando, em 23 de dezembro de 2000, a solução foi rejeitada devido às suas incertezas, os próprios intelectuais palestinos, como Edward Said e Rashid Khalidi, criticaram a proposta por sua falta de audácia e de determinação em encontrar um compromisso sobre a questão da Nakba (o êxodo forçado de 700 mil palestinos de suas casas em seguida à guerra árabe-israelense de 1948). Esse drama dos refugiados, depois de tudo, não diz respeito somente aos palestinos, como escreveu recentemente Bo Rothstein.
Mais de meio milhão de finlandeses tiveram de abandonar a Carélia, em 1944, após a conquista pelos soviéticos; mais de 1 milhão de romenos foram expulsos da Bulgária, em 1941; mais de 1 milhão de poloneses foram forçados a abandonar as áreas que ficaram sob controle soviético em 1945; mais de 300 mil italianos foram forçados pelas tropas comunistas de Tito a deixar a Ístria e a Dalmácia depois de 1943; pelo menos 12 milhões de alemães foram expulsos de territórios que se tinham tornado parte, em 1945-1946, da Polônia e, na época, da Tchecoslováquia; para não mencionar o Rohyngia; ou assim por diante.
Contudo, nenhuma dessas catástrofes produziu a “sacralização” do direito de retorno, como aconteceu na Palestina. Sacralização que teria tornado impossível a conclusão do acordo de Camp David, cujo fracasso gerou um grave impasse político que as lideranças israelenses e palestinas teriam astuciosamente pensado manobrar em benefício próprio.
O conflito no Médio Oriente não pode ser resolvido enquanto houver esse choque entre duas entidades homogêneas, caracterizadas, ademais, por identidade religiosa em vez de política. Tanto no interior de uma como da outra parte, existem posições que contrastam tais representações e que deveriam ser apoiadas para iniciar um processo de conciliação.
Israel não é a sua direita religiosa, embora esta tenha se tornado cada vez mais influente sob o premiê Benjamin Netanyahu, resultando na fragmentação da Cisjordânia e na sua militarização para proteger os colonos, alimentados pelas suas fantasias bíblicas supremacistas. Uma política que foi e continua a ser contestada por setores significativos da sociedade israelense, que tem denunciado a ligação autoritária entre a negação dos direitos dos palestinos e o enfraquecimento do Estado de direito do próprio país. Centenas de milhares de israelenses saíram às ruas em 2023 para contestar a contrarreforma do Judiciário promovida pelo governo de Netanyahu.
A Palestina também não é a sua direita religiosa (Hamas). Esta última, espelhando a negação de direitos dos palestinos por parte dos judeus, não reconhece a existência de Israel. O Hamas está longe de ser o representante do povo palestino. Enquanto Hamas persegue a destruição de Israel – sua missão desde que foi formado, em 1987 –, a maioria dos residentes de Gaza e Cisjordânia se declara a favor da solução de dois Estados.
Há algumas semanas, na revista “Foreign Affairs” – embora acredite que hoje esses números deveriam ser revistos –, Amaney Jamal e Michaele Robbins reportaram os resultados de sondagem do Arab Barometer, que envolveu 1.189 palestinos, de Cisjordânia e Gaza, entre 28 de setembro e 8 de outubro. Segundo ela, o governo do Hamas em Gaza contava com o apoio de 29% dos palestinos, enquanto 67% declararam ter “nenhuma ou pouca confiança” no grupo.
Expectativa de paz
Para que essa história possa ter um fim, esperando que seja pacífico, o Hamas e os fundamentalistas de um lado ou de outro não podem fazer parte dela. Porquanto possa valer a minha opinião, ou seja, nada, acredito que a Israel deva ser reconhecido o direito de viver em paz e aos palestinos o direito de ter um Estado.
Existem cerca de 20 casos no mundo, mas certamente o mais conhecido é o da Costa Rica (1949), onde o exército foi abolido. A Palestina, com as devidas garantias internacionais, poderia ser um deles. Acredito que poderia representar um modelo e ser um motor do crescimento pacífico daquela região.