A música faz parte da cultura de um povo. As letras das músicas, por sua vez, podem amiúde retratar ou mesmo reforçar padrões culturais, nem sempre tão agradáveis aos olhos e ouvidos quanto as músicas.
Por trazerem melodias gostosas, facilmente nos contagiam, a ponto de não nos darmos conta de que, às vezes, elas podem estar auxiliando na reprodução de preconceitos ou, até mesmo, na incitação à violência, e, consequentemente, na manutenção de relações de dominação.
Refiro-me aqui às relações entre homens e mulheres. Por isso, trago alguns trechos de duas músicas bem conhecidas nossas para discutir brevemente a violência contra a mulher.
Uma, se eternizou na voz de Roberto Carlos, embora a autoria seja de Luiz Ayrão: "Ciúme de você", e outra, também conhecida, principalmente dos amantes do samba: "Faixa amarela", composta e gravada por Zeca Pagodinho, e que mais tarde, Martinho da Vila também gravou, porém, fazendo algumas modificações na letra, justamente em seu ponto mais problemático, em que fica nítida uma ameaça física a sua amada.
Vamos às letras...
(...) Se você põe aquele seu vestido
Lindo e alguém olha pra você
Eu digo que já não gosto dele
Que você não vê que ele está ficando démodé
Mas é ciúme, ciúme de você
Ciúme de você, ciúme de você
Este telefone que não para de tocar
Está sempre ocupado quanto eu penso em lhe falar
Quero então saber logo quem lhe telefonou
O que disse, o que queria e o que você falou
Só de ciúme, ciúme de você
Ciúme de você, ciúme de você
Se você me diz que vai sair
Sozinha, eu não deixo você ir
Entenda que o meu coração
Tem amor demais meu bem e essa é a razão
Do meu ciúme, ciúme de você
Ciúme de você, ciúme de você
Eu quero presentear
A minha linda donzela (1)
Não é prata nem é ouro
É uma coisa bem singela
Vou comprar uma faixa amarela
Bordada com o nome dela
E vou mandar pendurar
Na entrada da favela (...)
Mas se ela vacilar, vou dar um castigo nela
Vou lhe dar uma banda de frente
Quebrar cinco dentes e quatro costelas
Vou pegar a tal faixa amarela
Gravada com o nome dela
E mandar incendiar
Na entrada da favela
Vou comprar uma cana bem forte
Para esquentar sua goela
E fazer um tira-gosto
Com galinha à cabidela (...)
As letras das músicas citadas tocam em pontos fundamentais da violência contra a mulher e dos relacionamentos abusivos. E, neste caso, de forma evidentemente naturalizada.
Sabemos que esses relacionamentos geralmente começam justamente assim: por ciúme, um ciúme que se esconde por trás da justificação de que seria amor, e se efetivam pelo controle de várias questões: dos passos, das conversas, das relações, da roupa que veste.
E, na segunda música, vemos uma comprovação de ameaça física, caso a mulher “vacile”. Ora, o que quer dizer vacilar? Não fazer o que ele quer? Não retribuir o seu amor? Não lhe tratar bem?
Pode ser tantas coisas. Mas normalmente é não estar de acordo com o que o homem deseja, e com o que a sociedade impõe para a mulher. Sem contar que o que pode estar aqui implícito é a impossibilidade de a mulher ser o sujeito do desejo, já que isto só é possível ao homem.
No que toca à realidade, quase que diariamente somos bombardeados com notícias de feminicídio, violência contra a mulher, agressões, assédios, e por aí vai. São tantos casos que já estão quase se tornando rotina. E o que vira rotina se banaliza, não nos impressiona mais, não nos choca, se naturaliza.
Isso é grave!
Pergunto sobre o porquê da violência contra a mulher. A cultura, os valores, a sociedade patriarcal? De acordo com os órgãos competentes, o motivo das agressões e, principalmente, dos feminicídios, é quase sempre o mesmo: o homem não aceita o fim do relacionamento.
O homem entende que a (sua) mulher não pode, não tem o direito de querer colocar fim ao relacionamento, que talvez, já se dê em razão de este ser abusivo.
Entendo que o fenômeno da violência contra a mulher esteja relacionado ao fato de que as mulheres são entendidas como “coisas”. As mulheres são objetificadas. As mulheres podem ser usadas e abusadas. E ainda, elas têm um dono. São propriedade de alguém, um homem. Obviamente, coisas têm um dono.
Quando muito bonitas, elas são disputadas. Mas o que se disputa? Uma coisa. Um emprego, um campeonato. Não um ser humano. Inclusive quando assistimos a um filme, por exemplo, vemos como são retratadas as histórias de amor entre homens e mulheres.
Quando uma mulher é disputada, ela é realmente disputada. Quem levará o “prêmio” será aquele que se sair melhor. Quem for mais honrado, mais forte, o melhor guerreiro, no caso de hoje, o mais rico, mais bem-sucedido etc.
Já quando um homem é o “objeto” do amor entre duas mulheres, ele não é objetificado, na verdade, ele é o homem, quase um semideus, e as mulheres ficam em segundo plano, normalmente são inclusive objetos de chacota.
Enquanto os homens são dignos de honras, não somente o que venceu, mas o que perdeu também. “Naturalmente” (2), os homens já são detentores dos “troféus”, nós, as mulheres.
Em uma sociedade patriarcal, as mulheres não passam de objetos. Seja aos olhos dos homens, da religião, da tradição, da família, independentemente do sistema econômico em vigor.
Obviamente, que o capitalismo se apropria do patriarcado de modo singular, como nos ensina a socióloga Heleieth Saffioti (2015). As mulheres, ou são vistas como “deusas” (3) ou bruxas, ou um sinônimo de feiticeiras, capazes de enfeitiçar os homens, ou então são vistas como fáceis ou fúteis. Jamais como seres humanos capazes de pensar e de decidir por si mesmas.
E assim, elas continuam apanhando.
(*) Vera Simone Schaefer Kalsing é professora da Ufla
Notas