Em 2024 completam-se 5 anos do desastre de Brumadinho e 9 anos do de Mariana. Nesse tempo, as empresas aprenderam que, ao invés de assumirem a reparação de danos, é mais vantajoso pagar ao Estado, para que este o faça. A preferência pelas “obrigações de pagar” em lugar das “obrigações de fazer” é nítida no acordo de Brumadinho, e dá a tônica na repactuação de Mariana (atualmente suspensa), além de estar presente nos acordos de Conceição do Mato Dentro, no de Macacos, em Nova Lima, e, possivelmente, no de Maceió (AL).

Passar um gordo cheque ao Estado tem se demonstrado exitosa estratégia, já que a empresa ganha de várias maneiras. Quita antecipadamente responsabilidades civis, tira das costas o desgaste da reparação (que muitas vezes causa mais danos), sai de cena das pautas negativas, potencializando as positivas na mídia, e precifica o litígio trazendo segurança ao mercado (que muitas vezes reage alavancando as ações das empresas).

Terceirização da reparação

Aos representantes do Estado, em especial os vinculados a governos, tal arquitetura jurídica das grandes reparações trouxe vastas possibilidades de turbinar o orçamento público, muitas vezes direcionando recursos para locais e sujeitos sem qualquer conexão com a região atingida. No entanto, a lógica de terceirização da reparação não tem trazido vantagens aos maiores interessados: as pessoas atingidas.

Ocorre que, no caso de ações cíveis públicas, a legislação prevê a existência de uma figura sui generis: o substituto processual. Na impossibilidade de a Justiça acolher milhares de atingidos na lide, ouvindo de cada qual sua versão dos fatos, a figura do substituto a todos personifica, com plena autonomia em suas decisões processuais. Diferentemente do representante, o substituto não presta contas de suas decisões, pois atua em nome próprio. Talvez por essa razão nenhuma das centenas de milhares de pessoas atingidas participou ou validou a celebração dos acordos já citados.

Acordo da Vale em Brumadinho

No caso de Brumadinho, as Instituições de Justiça (IJs) e o governo de Minas Gerais fecharam um bilionário acordo com a Vale em 2021. Dentre as várias ações de reparação existentes, os “Projetos de Demandas das Comunidades Atingidas” foram os que geraram maior expectativa. Também chamada “Anexo I.1”, tal iniciativa foi anunciada aos substitutos processuais como uma grande vitória. Seriam R$ 3 bilhões sob gestão participativa, para utilização em projetos sociais e microcrédito, com vistas a reparar o dano coletivo socioeconômico.

Passados quase três anos da assinatura do acordo, nenhum projeto saiu do papel e nenhum centavo foi cedido em microcrédito. As IJs atualmente buscam resolver um imbróglio acerca de questionamentos da entidade selecionada por edital público para gerir parte dos recursos (10%) do Anexo I.1. Dentre as funções assumidas por força do edital, está a gestão responsável do recurso, com “aferição dos melhores rendimentos possíveis”.

Ainda que reine a concórdia entre IJs e empresa selecionada, e essa parte dos recursos passe a render satisfatoriamente, os demais 90% permanecem em contas judiciais cuja remuneração segue índices da poupança. Fossem aplicados em fundos conservadores formados por títulos públicos, seriam os recursos majorados em, no mínimo, R$ 30 milhões ao ano (1). Significa dizer que as pessoas atingidas perdem cerca de R$ 85 mil por dia em projetos que poderiam transformar sua realidade.

Outros valores no acordo de reparação

Custa acreditar em tal estado de coisas, em especial quando se verifica que isso não ocorre com outros valores decorrentes do acordo de reparação – por exemplo, os do Anexo I.2, o Programa de Transferência de Renda. Da ordem de R$ 4,2 bilhões, este recurso foi convertido em um fundo exclusivo, lastreado em títulos públicos e sem tributação, devido à imunidade tributária da entidade gestora. O programa paga mensalmente R$ 100 milhões a cerca de 130 mil pessoas, e foi pensado para durar 48 meses. Apesar da execução já realizada de R$ 2 bilhões em 24 meses, o fundo rendeu cerca de R$ 900 milhões. Ou seja, através de exitosa administração financeira, as IJs poderão prorrogar o pagamento do auxílio às pessoas atingidas em pelo menos 6 meses.  

Entre constatações de acertos e erros das instituições envolvidas nos processos de reparação, uma coisa se pode afirmar: é hora de repensar o arcabouço normativo por detrás dessa realidade. Instituições como Defensorias e Ministérios Públicos não são talhadas para a gestão, como bem demonstram os fatos. Ao mesmo tempo, os órgãos administrativos do poder executivo ou o legislativo são potencialmente contaminados pelos interesses políticos, o que desafia a consagração da justiça a todos os grupos e pessoas.

“Claim resolution facilities”

O modelo das “claim resolution facilities”, como ocorre em alguns países, poderia ser adaptado para a realidade brasileira de modo a potencializar a capacidade de gestão da iniciativa privada e do terceiro setor, com a missão institucional de proteção da ordem jurídica e do interesse público que movem as instituições de estado. Trata-se de robustecer a colaboração de instituições de justiça e do próprio Judiciário com atores privados externos em níveis mais elevados da hierarquia institucional.

Para que estes atores sejam proponentes, em vez de meros executores de decisões já tomadas, estendendo a sua validação também às comunidades e pessoas atingidas. Por certo dessa forma se produziriam soluções técnica e juridicamente mais eficientes, além de participativas.

O que se quer, repise-se, é equilibrar a balança dos interesses. Não se pode achar aceitável um modelo de reparação em que empresa e Estado tirem proveito, ao passo que as pessoas atingidas expressem os piores níveis de satisfação.

 (1) Comparando a diferença de rendimento anual da poupança em relação ao tesouro direto.

* Rogério Gianetti é engenheiro civil, atingido pelo rompimento da barragem da Vale em Brumadinho, e faz parte da Rede da Atingidos da Bacia do Paraopeba e do movimento Paraopeba Participa.