Futebol voltando para casa?

A relação do povo britânico com o futebol é fascinante. Um dos elementos que mais me agradam nesse elo tão profundo quanto peculiar se confunde com uma faceta cultural da ilha de Shakespeare: o gosto pelo humor autodepreciativo. Na Inglaterra, raramente se vê torcedores de clubes pequenos tentando convencer interlocutores de que a agremiação que amam carrega méritos esportivos subestimados; o fã não tenta “explicar”, “racionalizar” sua paixão: ele simplesmente a leva no peito, apesar dos fracassos em sucessão. Um episódio que me remete a essa característica está eternizado na versão comentada do emocionante “Lord Don’t Slow Me Down”, documentário sobre o Oasis – o foco desse registro é a turnê do disco “Don’t Believe the Truth”, de 2005 (tive o privilégio de testemunhar, in loco, neste mesmo ano, um dos shows dos Gallagher em Manchester).

Humor inglês

No relato filmado por Billie Wash, Noel Gallagher, olhando para o “Etihad Stadium”, diz algo como: “Ah, o templo do mau futebol...” Sabemos que o guitarrista é dos maiores entusiastas dos Citizens. A época ainda não era da bonança comprada pelo sheik Mansour; o United nem sequer cogitava o ostracismo advindo na fase pós-Ferguson. Noel troçava do seu principal passatempo, de algo essencial para sua própria identidade. Fenômenos assim não se restringem a portadores de uma verve especial, de uma sagacidade aguçada – caso do artífice de “Definitely Maybe”. Músicas entoadas em arquibancadas de todo o país exalam essa capacidade de rir de si mesmo.

Hino não oficial

Vociferar “Deus salve a Rainha” ressoa anacrônico para uma plateia contemporânea. Nos pubs próximos a Wembley, na próxima terça, essa não será a trilha sonora. “Three Lions”, parceria do The Lightning Seeds com os comediantes Baddiel e Skinner, criada para a Euro de 1996, tornou-se case sociológico; na Copa da Rússia, viralizou como a canção que empurrou a trupe de Southgate às semifinais; na atual caminhada inglesa rumo à glória continental, o já longevo hit faz ainda mais sentido.

Calejados

Uma anedota onipresente entre os comedores de fish and chips, sobretudo, em instantes de badalação em torno do escrete nacional, contempla mais ou menos a seguinte lógica: Euro e Mundial são aqueles certames nos quais a Inglaterra promete, dá pinta de candidata ao título e perde nos pênaltis para a Alemanha. Claro que, desde a última quarta, essa pérola da sabedoria popular espalha-se pela internet. Em 96, quando “Three Lions” pautou as rádios, a história foi essa. E Southgate estava lá.

Coincidências incríveis

Há cerca de 25 anos, o sonho esvaiu-se no pé direito do técnico de hoje. As semelhanças, contudo, não param por aí. Na primeira fase daquela Euro, assim como na atual, houve o clássico contra os escoceses – marcado outrora pelo icônico gol de Gascoigne; se atingir a final em 2021, a Inglaterra só sairá de Wembley uma vez – em 96, todas as partidas dos anfitriões aconteceram no templo londrino –, nas quartas. Para terminar, de novo, pela frente, a Alemanha...

Letra

A letra de “Three Lions”, ao citar as décadas de agrura, e que a Inglaterra estragará tudo, é um clássico da autodepreciação.

Invasão

Milhares de escoceses em Leicester Square: o amor pelas seleções, o engajamento acerca delas, é muito maior no Reino Unido.