Cida Falabella

O pixo vai falar, e numa boa

Criminalizar mais não limpará sua consciência nem a cidade

Por Cida Falabella
Publicado em 29 de julho de 2021 | 03:00
 
 
 
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 “Se se ama, não se mata”. Reza a lenda que uma freira da congregação salesiana pixou o muro do colégio católico Pio XII numa madrugada de 1980. Era final da ditadura, uma série de feminicídios veio à público, e a comoção pelo absurdo julgamento de Ângela Diniz levou mulheres de Belo Horizonte a criarem o movimento “Quem ama não mata”. Concorda com a frase pixada?

O pixo está em todo lugar, inclusive no muro da minha casa. Não conheço os autores nem entendo suas letras, mas gosto das cores, das formas que deixaram no cinza. Tal qual obra de arte, olho para os traços no muro tentando decifrar seu enigma. Quantas perguntas existem diante de uma pintura?

Por falar em formas e cores nos muros, BH está no cenário internacional de arte de rua. O Cura (Circuito Urbano de Arte) é aquela galeria a céu aberto composta por obras que misturam elementos do pixo e do grafite para formar um abraço entre o dia e a noite, a rinha entre o galo e a raposa, uma mãe negra e seus filhos, ou Híbrida Ancestral…

Artistas e organizadoras desse festival vêm sendo alvo de constantes ataques, processos e ameaças. A mesma cultura racista de repressão à arte de rua e periférica, que já perseguiu a capoeira, o samba e até o skate, hoje também criminaliza o funk e todos os grafismos urbanos.

“Viva o MST”. Aos 80 anos, na abertura de uma exposição sobre sua vida e obra no teatro, João das Neves pixou essas palavras na galeria do Itaú Cultural, na avenida Paulista. Além de exaltar o Movimento Sem-Terra, a performance denunciava a perseguição aos pixadores praticada em BH. Naquela época, o prefeito Marcio Lacerda comemorava a prisão absurda de jovens pixadores por crime de formação de quadrilha. Ainda hoje, os muros de BH dizem “libertem os Piores de Belô”.

Entendo quem não gosta, acha feio e prefere pintar por cima. Só não aceito que é caso de prisão. Os grafismos urbanos estão no limite entre arte e transgressão. Ao mesmo tempo em que enfeitam e embelezam, tensionam e provocam a cidade. O ato de intervir, sem autorização, em muros e monumentos, já é um crime ambiental. Não se trata, portanto, de discutir a descriminalização do pixo: trata-se de aplicar penas justas a um crime brando, oferecendo alternativas de futuro a jovens talentosos, em sua maioria negros e marginalizados. BH, inclusive, já teve experiências incríveis de políticas públicas juvenis a partir dessa realidade, como o projeto Guernica e o programa Fica Vivo.

Lamentavelmente, na contramão dessas políticas e relembrando os tempos de Lacerda, vereadores aprovaram um Projeto de Lei que aumenta penalidades contra pixadores, dizendo que vão “estimular a cultura do grafite” - como se fosse possível separar as duas linguagens ou delegar às autoridades policiais o julgamento entre feio e bonito.

Rabiscar ou pintar nas paredes faz parte da cultura popular desde os tempos primitivos. Alguns desenhos têm autorização e mais apelo popular, outros são feitos justamente para transgredir. O que para uns é sujeira, para outros é arte. E não cabe ao poder público estabelecer limites para uma linguagem artística. Parafraseando a pensadora negra Lélia Gonzalez: “O pixo vai falar, e numa boa”.

Antes de punir, precisamos ler o que esses jovens escrevem, em todos os sentidos. Se seus recados são “mensagens violentas”, trata-se de algo simbólico, que não fere viva alma, diferentemente do tipo de violência fatal que eles enfrentam diariamente. Espero que o prefeito vete o projeto de lei porque ele é inconstitucional, porque o “crime” já é previsto e porque tinta nos muros – paciência – apaga-se. Mas e quanto a essas vidas?

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