Cristovam Buarque

'Dois Papas': o hino

Lições de uma obra que mobiliza imagens e ideias


Publicado em 31 de janeiro de 2020 | 03:00
 
 
 
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Existe filme bom, filme clássico e filme hino – esses deslumbram esteticamente, imprimem ideias e não esquecemos. “Shane – Os Brutos Também Amam” (EUA, 1953) é um desses. Assisti quando ainda jovem e até hoje lembro das imagens e da mensagem: a luta de trabalhadores sem-terra contra latifundiários, o amor discreto entre um homem e uma mulher e o fascínio de uma criança por seu herói. O filme “Dois Papas” é um filme-hino. Agarra nossa mente com beleza plástica, sua mensagem e seus diálogos. Fernando Meirelles conseguiu fazer um dos raros filmes-hino.

Em “Shane”, o diretor George Stevens utilizou a técnica de filmar com a câmera na altura dos olhos de uma criança e nos deu a inquietante perspectiva de assistir à história e entender personagens e cenários com a visão simples de um menino. Não sei o mistério da técnica usada por Fernando Meirelles, mas em sua obra vemos dois homens de físico mediano como se fossem gigantes, na deslumbrante e monumental paisagem do Vaticano.

Sabemos, entretanto, que ele fez grandes personagens pelo diálogo, pela postura e pelo valor moral de cada um. A genialidade do diretor está em dar veracidade a uma obra que ele cataloga como ficção para representar uma realidade. É isso que faz de Meirelles um grande cineasta. Os diálogos passam veracidade porque são produto da matéria-prima dentro de cada personagem, misturando moral e lucidez, ética e inteligência, sonhos, angústias, frustrações.

Do primeiro ao último encontro entre Bento XVI e Francisco I, este último ainda cardeal Bergoglio, percebem-se duas mentes brilhantes e diferentes, como em uma luta de esgrima no palco da história. Em “Shane”, vemos, com olhos de criança, tiros e murros entre lutadores de um lado ou do outro da história. Em “Os Dois Papas”, também nos sentimos crianças diante de dois lutadores gigantes com argumentos ideológicos, políticos, sociais e teológicos.

Quando escutamos um hino, reunimos o sagrado com nossa vida. O filme “Dois Papas” nos passa isso. Eles nos representam com nossos credos e nossas visões de mundo. “Dois Papas”, como os hinos, nos deixa com o desejo de querer mais tempo de filme e de querer mais líderes como eles: que dialoguem entre si, exatamente por discordarem, por entenderem diferentemente o presente e sonharem diferente futuro; e que sejam capazes de mea-culpa e autocrítica como eles fazem de seus passados.

Pena que nossos políticos não fazem essa expiação pelos pecados da corrupção nas prioridades e no comportamento, a “pedofobia” de negar escola, saúde, alegria a nossas crianças. Ainda não fizemos nossas autocríticas, confissões, e nem aceitamos o diálogo com quem divergimos: não temos gigantes na política brasileira destas últimas décadas. E sem eles nenhum cineasta gigante consegue fazer o nosso filme-hino da política.

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