Cristovam Buarque

Lei incompleta

Lei Áurea não incorporou população negra à sociedade


Publicado em 21 de maio de 2021 | 03:00
 
 
 
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A Lei Áurea é considerada um marco social, pela extinção da escravidão, e marco legal pela simplicidade. “É declarada extinta desde a data desta lei a escravidão no Brasil”. Nada além de 12 palavras, e acabou a infâmia de tratar pessoas como mercadoria.

A simplicidade deixou a lei incompleta e inócua no propósito de servir para a garantia da liberdade, promoção social e progresso dos afrodescendentes no Brasil. Aquele artigo simples foi capaz de acabar com os grilhões, mas não de incorporar a população negra à sociedade brasileira.

Teria sido diferente se a Lei Áurea tivesse mais um artigo: “Fica estabelecido no Brasil um sistema único, público, de educação para todos”. Mas a lei ficou incompleta. Sem educação as algemas físicas que aprisionavam os escravos se transformaram em algemas mentais, que amarram todos os pobres brasileiros.

Desde 1888, o Brasil manteve a desigualdade abismal entre os que podem pagar por uma boa educação e aqueles que não podem. Se desde aquela época os descendentes dos escravos e seus senhores estudassem em um mesmo sistema escolar com qualidade para todos, ao longo dessas três ou quatro gerações, a desigualdade não seria herança financeira, que termina sendo também herança racial.

Por 40 anos depois da lei, nem ao menos criamos um Ministério da Educação; quando criado, já nos 1930, serviu para coordenar a educação da minoria dos filhos da população branca e rica, nas poucas escolas de base que foram criadas ao longo das décadas. A obrigatoriedade de vaga aos 6 anos só veio em 1988, com a Constituição; aos 4 anos, em 2013; a obrigatoriedade de vaga até os 17 anos, só em 2016; o Piso Nacional Salarial para o Professor, em 2008.

Foram feitas leis como a Merenda Escolar (1955), Emenda Calmon (1983), Livro Didático (1985), Fundef (1996), PNE-I (2001), Fundeb (2007), Piso Salarial do Professor (2008), PNE-II (2011), BNCC (2020), e o Brasil continua com a educação entre as piores do mundo e provavelmente a mais desigual entre todos os países.

Até hoje, a sociedade brasileira, seus eleitores e líderes continuam com a mesma visão da princesa Isabel e do primeiro-ministro João Alfredo – basta o único artigo da Lei Áurea, a educação de cada criança é assunto da família ou do prefeito, não do país.

Nos navios negreiros havia marujos com a tarefa de impedir os escravos desesperados de pular no mar, porque a morte deles era uma perda financeira para o proprietário. Hoje, não oferecemos escolas que assegurem a seus alunos querer permanecer nelas, e, se eles quiserem pular no mar da deseducação, aceitamos que o façam sem percebermos a perda que isso representa para o futuro de cada um deles, para suas famílias e para todo o país.

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