Cristovam Buarque

Sequestradores sonsos e tolos

País sabota seu futuro ao arrancar crianças da escola


Publicado em 12 de março de 2021 | 03:00
 
 
 
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Convencionou-se dizer que “crianças abandonam a escola”, quando o certo seria dizer que elas são “arrancadas da escola”, por um conjunto de forças: pobreza da família, desmotivação familiar ou dos professores, equipamentos obsoletos, métodos ultrapassados, merenda ruim. É como se o Brasil conspirasse para sequestrar crianças para fora da escola. Isso acontecia no século XIX nos Estados Unidos, contra crianças negras.

Por quase um século, houve naquele país redes de apoio aos fugitivos, da mesma forma que as redes de políticos, advogados, policiais, que agiam no sentido contrário, sequestrando afro-americanos no Norte para levá-los de volta ao Sul. O “Clube de Sequestro” tinha agentes que retiravam crianças negras de escolas e as levavam para juízes, que autorizavam o envio para os senhores no Sul.

No Brasil, não é necessário “Clube de Sequestro” porque as condições sociais e educacionais forçam as crianças a abandonar a escola. Agimos como o “Clube de Sequestro” dos EUA, levando crianças à escravidão do desemprego, baixos salários, despreparo para enfrentar e usufruir do mundo moderno.

Os sequestradores norte-americanos eram movidos por ganhos pessoais, recuperando o patrimônio do proprietário. No Brasil, somos sequestradores sonsos, movidos pela hipocrisia ao ignorarmos o analfabetismo como algema mental e a falta de educação como escravidão.

O abandono das crianças e das escolas se explica pelo fato de que a má educação é uma trincheira da escravidão ainda não plenamente abolida. Para que descendentes sociais de ex-escravos não se libertem plenamente, não se asseguram boas escolas para eles nem para seus filhos.

Esta é a lógica da perversa desigualdade escolar, que condena nossas crianças a abandonar a escola, tal como fazia o “Clube de Sequestro” nos Estados Unidos no século XIX. Em vez de voltarmos para antes de 1888, simplesmente fechamos os olhos à fuga das crianças em direção à escravidão moderna.

Mas, além da perversidade sonsa, somos tolos, porque não medimos o custo do sequestro para a nação brasileira e o conjunto dos brasileiros. Cada criança que abandona a escola provoca uma perda para o país e, portanto, para os brasileiros.

O PIB seria o dobro do atual se, na infância, nossos trabalhadores não tivessem sido sequestrados para fora da escola. A falta de educação exige gastos gigantescos com assistência social porque os sequestrados na infância não são capazes de se manter na vida adulta.

Sequestramos crianças negando-lhes futuro, e todos perdem o que elas poderiam oferecer ao Brasil se tivessem recebido boa educação. Somos sequestradores sonsos individualmente, ao explorarmos as crianças sequestradas quando adultas, e tolos socialmente, ao impedi-las de se prepararem para construir um país moderno que beneficiaria a todos.

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