DANIEL BARBOSA

Breviário de introspecções musicais XIX

Redação O Tempo


Publicado em 23 de setembro de 2016 | 03:00
 
 
 
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Não será surpresa nenhuma se o novo projeto musical de Iara Rennó reverberar entre os lançamentos nacionais de 2016 com a mesma intensidade com que “A Mulher do Fim do Mundo”, de Elza Soares, o fez em 2015. Trata-se de um lançamento duplo, com os álbuns gêmeos “Arco” e “Flecha”, que se complementam fechando de forma muito bem amarrada um conceito que abarca duas questões prementes (que, aliás, também estão no cerne do disco de Elza): o empoderamento feminino e o orgulho negro. São discos enxutos, apenas nove faixas em cada, e que apresentam sonoridades completamente distintas um do outro.

“Arco” é o disco que trata de feminismo e de feminidade, executado por mulheres e com letras que descendem do livro de poemas eróticos “Língua Brasa Carne Flor”, estreia literária de Iara. Além dela própria, cantando e tocando guitarra, a incomum formação instrumental presente em todas as faixas conta apenas com a bateria de Mariá Portugal e com o clarone de Maria Beraldo Bastos. Aqui e acolá surgem um cavaquinho, uma programação eletrônica ou alguma contribuição sutil de um convidado especial, e só.

A despeito da instrumentação parca, “Arco” é um disco denso, por vezes ruidoso, agressivo, como na faixa “Meus Vãos”, com arranjos intricados, ou seja, totalmente avesso a qualquer expectativa de que, por ser um disco “feminino”, feito por mulheres, seja algo fofo, doce ou plácido. Não é. “Arco” é áspero, cortante, contundente. E as composições são de uma beleza e inventividade ímpares, tangendo o tema central proposto sem nunca cair na obviedade ou no tom panfletário. Além da já citada “Meus Vãos”, as faixas “Sonâmbula”, “Vulva Viva” e “O Que Me Arde”, parceria de Iara com sua mãe, Alzira E., com arranjo sustentado apenas por voz, bateria e clarone, se destacam entre as melhores. “Mama-me”, primeiro single, que já ganhou um clipe abusado, é a mais fraca do disco, e ainda assim é muito boa, o que dá uma ideia da qualidade da obra.

“Flecha” é o disco da negritude, com faixas que convidam a chacoalhar as cadeiras, mais solar e vibrante do que sua cara-metade. Nele, Iara está acompanhada por uma banda que reúne músicos que acompanham artistas como Criolo e Céu e integrantes do grupo Bixiga 70, todos capitaneados por Curumin, que assina a produção e toca bateria em todas as faixas.

“Invento”, que, diga-se, é dedicada a Elza Soares, e “Quebra”, parceria de Iara com Domenico Lancelotti e Bruno di Lullo, são as músicas que melhor sintetizam a proposta de “Flecha”, cheias de balanço e sensualidade. Em “Ritmo da Moçada”, uma bossa marota assinada por Negro Leo, Iara, na única faixa dos dois álbuns em que se coloca apenas como intérprete, dá show ao evocar a Gal Costa dos primeiros discos, lançados entre fins dos anos 60 e início dos 70. E “Rosas e Socos”, poema de Paulo Leminski musicado por Iara, se eleva entre as melhores de “Flecha”, cativante logo à primeira audição.

Me parece não haver grandes dúvidas de que o projeto “Arco” e “Flecha” significa um salto na carreira de Iara Rennó, na medida em que, muito provavelmente, dará o ar da graça na maioria das listas de melhores lançamentos de 2016.

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