Trabalho

Síndrome de Burnout castiga operadores de mercado

Jornada diária chega a 18 horas na área de fusões e remuneração por desempenho gera stress

Por Estadão Conteúdo
Publicado em 15 de maio de 2021 | 17:39
 
 
 
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Uma carga de trabalho de no máximo 80 horas por semana - 16 horas por dia, considerando de segunda a sexta-feira - foi o pedido feito por analistas juniores no exterior à direção do Goldman Sachs. No início do ano, eles divulgaram uma série de slides em que mostravam as condições extenuantes de trabalho dos novatos no banco de investimentos. Em média, eles trabalharam 98 horas por semana (19 horas e 36 minutos por dia) em janeiro. Os funcionários ainda apontaram queda nas condições de saúde mental Numa escala de zero a dez, a nota atribuída ao bem-estar foi de 2,8. Antes de ingressarem no banco, era de 8,8.

O documento repercutiu no mercado financeiro globalmente. O Goldman Sachs reconheceu, em nota, que seus funcionários estão "muito ocupados". "Um ano após o início da covid, as pessoas estão bastante sobrecarregadas e é por isso que estamos ouvindo suas preocupações e tomando medidas para resolver o problema", publicou o banco, sem dar detalhes.

Uma semana após os slides dos funcionários do Goldman se tornarem conhecidos, o Citigroup se mostrou preocupado com a situação de seus trabalhadores. A presidente global do grupo, Jane Fraser, enviou, no fim de março, um e-mail aos colaboradores em que afirmava que "a difícil separação entre casa e trabalho e o implacável expediente de trabalho pandêmico afetaram nosso bem-estar".

Jane disse que a situação era "insustentável" e estabeleceu mudanças, como o fim das reuniões internas por vídeo às sextas-feiras. Pediu também para que fossem limitadas as ligações fora do horário de trabalho e nos fins de semana - "lembram deles?", escreveu.

Com companhias globais, o mercado financeiro repete o padrão de rotinas exaustivas no Brasil, principalmente entre os novatos. Na avenida Faria Lima - que concentra o setor em São Paulo -, histórias de noites sem dormir, meses sem um único dia de folga e burnouts são frequentes. Segundo a International Stress Management Association (associação internacional de prevenção ao estresse) no Brasil, profissionais do setor financeiro ficam em terceiro lugar no ranking de incidência de burnout, depois de trabalhadores em segurança, na primeira posição, e de controladores de voo e motoristas de ônibus urbano, empatados, na segunda.

"Eu cuidava de bilhões de reais. Se o cliente queria algo para ontem, não tinha como dizer ‘meu horário já deu’", diz um profissional que deixou o setor no meio da pandemia.

Apesar das condições estressantes do trabalho, as remunerações elevadas - com bônus que podem equivaler a mais do que a pessoa recebeu durante todo o ano -, o status e a possibilidade de atuar nas maiores operações financeiras e corporativas do País atraem os profissionais. "Tem uma glamourização, mas também tem a oportunidade de trabalhar em casos incríveis", diz um profissional.

Esse pacote que engloba jornadas exaustivas, salários altos e estar no ponto nevrálgico do mercado financeiro não é exclusivo a profissionais de bancos e se estende a advogados dos maiores escritórios do País, que preparam os documentos para os negócios serem fechados.

Segundo uma advogada de um desses escritórios, não é raro ter apenas dois dias para entregar documentos de mais de cem páginas "Não tem a possibilidade de eu falar para os advogados seniores: ‘não deu porque eu estava tocando três operações ao mesmo tempo’."

Com prazos apertados para o fechamento de acordos e a necessidade de negócios serem anunciados antes da abertura da Bolsa de Valores, os profissionais chegam a dormir três horas por noite. Um advogado afirma já ter trabalhado um mês sem nenhuma folga, enquanto outro destaca que, em média, deixa de dormir três noites por mês por precisar finalizar algo.

Nesse ponto, os profissionais consideram que a quarentena tem até tornado a vida um pouco menos desconfortável. "Chego a ver como vantagem virar a noite trabalhando em casa. É mais confortável do que no escritório", diz uma fonte. Por outro lado, se antes já era difícil trabalhar apenas durante o horário comercial, agora isso se tornou impossível. "O pessoal perdeu a noção da hora. Tem call (reunião por telefone) que mandam invite (convite) para entrar às 23 horas."

Segundo um trabalhador, há casos em que é preciso acompanhar mais de uma reunião virtual simultaneamente - cada uma em um fone de ouvido. Isso porque, dependendo do tamanho da operação, são mais de cem pessoas participando da reunião, o que impede o profissional de remanejar a agenda.

A reportagem procurou os principais bancos e escritórios de advocacia do País. Nenhum quis comentar o assunto.

Jornada diária vai a 18 horas na área de fusões

São Paulo, 15 (AE) - As jornadas de profissionais da área de fusão e aquisição chegam a 18 horas quando estão tocando várias operações concomitantemente, dizem os profissionais. Em épocas tranquilas, são 10 horas de trabalho por dia no mínimo. Nesses períodos, talvez até fosse possível encerrar o expediente mais cedo, mas, ainda hoje, isso é mal visto.


"De forma geral, uma pessoa não consegue fazer todas as tarefas em oito horas. Mas, se você consegue terminar antes, também não pega bem. Existe a cultura de que você está desmotivado se termina cedo", diz um profissional que pediu demissão no ano passado. Essa mesma pessoa afirma que há a necessidade de mostrar estar disponível ao trabalho 24 horas por dia, principalmente entre os mais novos. "Eles acabam mandando e-mail às 23h, por exemplo."

Para outro profissional, porém, é exigido de forma velada que você esteja online nesse horário. "Mesmo que queira ser mais ágil para sair cedo, não posso. A gente não gerencia nosso tempo Tem de estar à disposição sempre. Antes da pandemia, havia um horário comercial bastante estendido. Agora, são 24 horas por dia."

Um profissional conta que, em um banco em que trabalhou, até havia certa preocupação de mudar essa cultura e pesquisas sobre bem-estar eram frequentes. "Mas alguns diretores não as levavam a sério."

Remuneração associada a desempenho gera estresse

 

São Paulo, 15 (AE) - Processos que atrelam a remuneração ao desempenho dos funcionários - e que são adotados por diferentes setores da economia, do mercado financeiro às universidade - são alavancas para jornadas de trabalho exaustivas e burnouts, diz Fernando Gastal de Castro, professor de psicologia na UFRJ com doutorado sobre burnout.

Segundo Castro, esses métodos tornam o trabalhador "escravo" das metas e exacerbam o senso de urgência. "Tudo vira para ontem. É uma sobrecarga brutal e, se você não atinge a meta, é excluído do sistema."

Castro destaca que tanto os casos de burnout como a adoção de sistemas de meta se intensificaram concomitantemente nos últimos 30 anos. "O burnout é símbolo da irracionalidade que o mundo tem se tornado e abala setores da sociedade cada vez maiores."

Para o pesquisador, o trabalho remoto, amplamente adotado durante a pandemia, torna a situação dos funcionários ainda mais precária. "Temos um incremento do conflito entre vida pessoal e trabalho. Essa mistura torna o home office mais um elemento de sobrecarga." Castro destaca ainda que, com o home office, a lógica social desaparece do trabalho. O tempo produtivo pode se tornar maior, mas o de vida é prejudicado.

Presidente da International Stress Management Association (associação internacional que combate o estresse) no Brasil, a psicóloga Ana Maria Rossi afirma que, especificamente no setor financeiro, o estresse pode ser maior do que em outras áreas por causa da falta de previsibilidade. "É um segmento que requer planejamento grande - as pessoas estão lidando com os recursos dos outros e vão ser cobradas por isso - em uma sociedade extremamente instável. Essa falta de previsibilidade cria um estresse adicional."

Ana Maria, porém, diz que não necessariamente o número de horas trabalhadas por dia vai significar mais estresse. "Tem gente que ama o que faz e não se importa de passar horas no escritório. O problema é quando a pessoa é pressionada por gestores a trabalhar além do horário", diz. "Muitos se veem forçados a trabalhar mais por medo de demissão ou de ser considerado aquele que não veste a camisa da empresa."

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