Nova rotina

César Cielo vê Olimpíada de longe e teme pelo momento atual e futuro da natação

Cielo segue na ativa, mas sem foco no mais alto rendimento, lamentando pensamento clubístico que persiste. Para ele, modalidade perdeu ainda mais força após Jogos do Rio de Janeiro

Por Daniel Ottoni
Publicado em 21 de abril de 2021 | 11:35
 
 
 
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No mês de janeiro, César Cielo, campeão olímpico dos 100m livres nos Jogos de Pequim 2008, esteve em Belo Horizonte para inauguração do projeto 'Gigantes da Água', que abre espaço para deficientes e portadores de necessidades especiais para treinarem na piscina de uma das unidades na capital mineira.

Em conversa exclusiva com a Coluna Esportivamente, Cielo falou da iniciativa, que segue sendo rara no esporte brasileiro, da nova rotina de treinar apenas uma vez por dia, sem foco em grandes competições e não poupou críticas à formação da natação brasileira. 

Chances nos Estados Unidos são consideradas como uma oportunidade rara e que precisam ser aproveitadas por jovens talentos. A  realidade no cenário nacional, onde o sistema 'clubista' segue ditando um desenvolvimento comprometido, não favorece o despertar em quantidade e qualidade que a natação precisa. 




Certo de que tem seu nome gravado na história do esporte brasileiro, Cielo divide, hoje, as atenções entre piscinas, sua empresa e seu instituto, quem sabe dali podendo sair novos talentos com potencial de mudar uma geração inteira.  

Tal iniciativa, como o 'Gigantes da Água', pensando em deficientes, é algo que ainda falta no cenário nacional?

Com certeza, sabemos que iniciativas de esporte e saúde são escassas no Brasil. O movimento paralímpico é recente, também estou aprendendo com este universo do esporte adaptado. É preciso evidenciar mais este cenário, olhar para um outro público. Pra mim, é muito legal ajudar a elevar a imagem de uma ação como esta, aprendo muito também. É um universo bem diferente nas suas regras e que vem crescendo muito. 

Por que muitos projetos e academias não pensam neste tipo de público?

Ainda não estamos preparados para conviver 100% com este público e ter uma relação harmônica entre os dois universos. É de se aplaudir o que fazem, eles colocam em risco a permanência de alguns membros, sabemos que tem gente que pode não gostar. A interpretação do ser humano varia de acordo com cada um. É um risco para a saúde financeira do negócio, mas algo que vale pelo benefício causado na sociedade, cria uma empatia e só vejo benefícios.

Qual transformação este projeto pode ter na vida destas pessoas?

Completa. Na maioria das vezes, achamos que a relação deve vir com doação, dinheiro, incentivo da TV, mas muitas vezes isso não resolve. É preciso doar tempo e oportunidade, quase 100% das vezes se trata disso. Temos que mudar o jeito de ver as coisas, se doar mais e não ficar doando dinheiro, achando que teremos um mundo melhor por causa desta ajuda.

Eu falo pelo meu projeto no Sul (Novos Cielos), o sentimento de estar ali e poder ajudar é indescritível, você muda a história da família, vai muito além do cidadão. Tiramos as pessoas de casa, proporcionamos bem-estar e saúde com atividade física, as pessoas ficam mais dispostas, fazem amigos. O benefício foi muito mais do que imaginávamos, não é só a prática esportiva que acontece com estes projetos. 




Brasil sente falta de atletas nas provas de fundo? Isso tem relação direta com os maiores ídolos do esporte serem velocistas?

Não temos trabalho de base pensado nisso. Os campeões que formamos vieram por conta de patrocínios, esforços individuais de famílias dedicadas, por terem nascido no lugar certo, dentro da família certa. É a explicação que encontro para medalhas que tive e também de nomes como Xuxa, Gustavo Borges, Ricardo Prado, Thiago Pereira. Foram grupos que ajudaram muito a natação sem fazer parte da CBDA ou alguma federação pública. Não temos trabalho visando a prática esportiva, quanto mais para se formar um campeão.

O Brasil é muito pobre sente sentido, sofremos com a falta de uma cultura de provas de fundo, é preciso ter paciência. A genética pode indicar várias coisas, estou tentando achar um motivo para responder sua pergunta. Mas acho que estamos mudando aos poucos, já temos o Guilherme Costa 'Cachorrão' fazendo excelentes provas, em Arapiraca e no Nordeste temos grandes nadadores e vale lembrar também do Allan do Carmo.

Tudo precisa de um primeiro para servir de incentivo. Espero que eles sejam inspiração, assim como a Ana Marcela, da maratona aquática, maior fundista do mundo na história da modalidade. Temos que dar mais carinho pra eles, é uma nova geração que merece muito. 

Por que provas de velocidade têm mais apelo?  

Tivemos a sorte de ter um cara como o Manoel dos Santos, além do Xuxa e Gustavo Borges, depois tivemos a minha geração. É tudo por acaso, não tem fórmula nem fator decisivo.

Não tivemos, com frequência, uma pessoa que desponte para puxar o resto, é preciso uma medalha olímpica para mudar o pensamento de uma geração inteira. Só assim é que novas pessoas aparecerão nas provas de fundo, comigo foi assim nas provas de velocidade, dei a sorte de nadar e ser inspirado por outros. 




Prevê medalhas para natação do Brasil em Tóquio? Quais provas com boas chances? Geração boa chegando? 

O Bruno Fratus tem feito suas melhores provas dentro dos 50m livre. Vejo chance de medalhas em provas como 4x100m, 4x200m, 50m livre e não descarto os 4x100 (medley), que está em sua melhor fase na história. No revezamento, acho muito difícil uma medalha visto o nível mundial que se apresenta. Temos uma boa geração chegando de atletas de 4x200 de 21, 23 anos.

O Murilo Sartori tem 18 ou 19, é um bom meio-fundista dessa leva, quem sabe um bronze não vem pra coroar o início de uma grande fase vitoriosa? (nota: um dia antes da publicação desta entrevista, o Brasil garantiu vaga na Olimpíada de Tóquio nos 4x200 com Murilo Sartori, Fernando Scheffer, Breno Correia e Luiz Altamir). 

Como está sua rotina de treinos, ritmo muito diferente de antes? Quais seus desafios a curto prazo?

Treino uma vez por dia, entre 8h e 11h e, pela tarde, fico na minha empresa. Estou feliz com a rotina que tenho, pretendo continuar competindo quando os torneios voltarem, talvez competições menores, algumas opções internacionais. No alto rendimento, não me vejo participando mais tão ativamente.

Estou em boa forma, mas para seleção teria que estar em uma condição ainda melhor. Prefiro que uma nova geração apareça, para eles terem a chance real de brigar por uma vaga. Não quero tirar o que pode ser o crescimento importante de um sonho olímpico. Se não for para eu entrar e dar o meu melhor, não é justo. Olimpíada não é foco pra mim agora, estou indo uma semana de cada vez. Acho improvável que eu desponte com algum tempo, prefiro manter a forma para nadar nos torneios que escolher e seguir com meu instituto e a empresa. 

Estipula prazo para se aposentar?

Não, parece que eu saio da natação, mas ela não sai de mim. Como estou hoje, consigo levar, é algo que ainda me dá prazer ter essa disciplina, me faz bem. Sigo com meus negócios e o instituto, a ideia é ampliar o projeto 'Novos Cielos' em Santa Catarina e também no interior paulista. Quero fazer esta ideia crescer, trabalhar com licenciamento, fazer cursos e disseminar informações sobre a natação. 




Qual o tamanho da diferença que faz aproveitar a chance de treinamentos em países como o Estados Unidos?

Fundamental. A natação brasileira caminhou pra trás desde a Olimpíada do Rio de Janeiro, vejo ela bem fraca atualmente. Temos uma boa estrutura, mas muita desorganização, seguimos neste sistema clubístico que limita demais o crescimento e as oportunidades. Se você é jovem e tem a chance de nadar nos EUA, não fique em dúvida: vá experimentar!

Se não der certo, volte, mas você tentou, não será o fim de tudo. Não perca esta oportunidade, o Brasil é um país com dificuldades para ser medalhista mundial ou olímpico. Torço muito porque ali estão meus amigos, mas precisamos de um sistema que incentive a competitividade. Precisamos de líderes, treinadores e de um presidente que realmente busquem o melhor para os atletas, não foi o que aconteceu nos últimos anos. 

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