'A ficha caiu tarde demais'

Coluna Esportivamente traz conto futebolístico inspirado em clássico sem torcida

Torcedor quis repetir ritual de todo clássico no Mineirão, se deparando com ambiente diferente do que se acostumou

Por Daniel Ottoni
Publicado em 12 de abril de 2021 | 19:42
 
 
 
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Não costumo escrever sobre futebol por aqui. Não é uma regra e me abro ao esporte mais popular do mundo vez ou outra. 

Mas a tristeza dos estádios de futebol vazios me inspirou em algumas linhas de um conto, que poderia muito bem ser verdade


A ficha caiu tarde demais

A pandemia veio como um 'soco no estômago' de diferentes formas. Por mais que futebol seja a coisa mais importante entre as que não são tão importantes assim, a influência na vida de Nestor foi grande. 

Não poder encontrar com os amigos e ir aos jogos tirou seu sossego. Era uma válvula de escape necessária e garantida, que se foi do nada. Se foi e ficou. 

A proximidade de um Atlético e Cruzeiro mexia com ele mais do que o normal. Estava incomodado em não poder participar de todo aquele roteiro que fez por mais de 20 anos. 

Sair de casa no horário pontual, com boa antecedência, virar a segunda à direita, passar no bar de Seu Américo, pegar uma long neck gelada e descer até o ponto de ônibus.

O Mineirão estaria praticamente vazio do lado de dentro e fora, com uma movimentação bem diferente dos clássicos. Aglomeração zero. 

 - Por que não? - pensou. 

E decidiu que repetiria todo seu ritual. Não falaria com ninguém e se permitiria estar a poucos metros do maior desejo. 

Foi somente ao entrar no ônibus que lembrou que não precisava ter saído tão cedo. Só ele e um outro passageiro, trânsito nenhum. Em outros tempos, teria gente 'saindo pela tampa' com os gritos de guerra avisando quem chegava. 

A ficha caiu de vez quando a tradição de subir a Avenida Abrahão Caram, tomando a saideira, apareceu na sua frente deserta, sem carros, torcedores e eles: os vendedores de latão. 

A subida foi mais quieta e afobada do que antes, mesmo com a ansiedade do clássico aparecendo por dentro, o fazendo colocar a máscara no queixo. 

Enquanto andava, imaginava na cena que estaria ali instalada há pouco tempo. Carros buzinando, com faixas, espetinho, tropeiro, torcedor correndo e o sempre presente grito dos cambista: 'ingresso, ingresso, ingresso'. Sentiu falta até do 'ingresso sobrando, eu compro'. 

Fez falta tudo que lhe remetia ao clássico. A imagem dava desânimo. Nenhum único bar aberto.

O sempre esquecido fone de ouvido foi lembrado e 'salvou' para escutar o jogo do lado de fora, sentado no meio fio, parecendo um mendigo perdido. 

Enquanto a bola rolava lá dentro, lá fora parecia que nada acontecia. Acompanhou, como sempre, a saída do ônibus do time do estádio e fez, na volta, o mesmo percurso. O ônibus que o deixou em casa foi o golpe final, mais vazio que antes e sem qualquer palavra sobre bola. O empate amargo era o de menos. 

Nestor voltou pra casa sentindo mais falta daquela rotina do que antes, mas não se arrependeu de ter preenchido o pequeno vazio. 

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