OPINIÃO

O caráter de Beatriz

Eu cultuo a minha esposa. Se pudesse, eu lhe faria um altar, não porque ela é uma santa, mas porque ela é um exemplo para mim

Por Fabrício Carpinejar
Publicado em 24 de maio de 2024 | 03:00
 
 
 

Você ama alguém pelo seu caráter.

Não é pela aparência, não é pela superfície, mas pela essência, por aquilo que o outro expressa sem palavras, pelas atitudes, pelos gestos secretos, por tudo que realiza e fala quando você não vê, quando você está de costas.

A beleza mora no caráter. A beleza é a verdade pessoal de cada um, como se relaciona com o mundo, se puxa todos para baixo, com a sua angústia e ansiedade, ou todos para cima, com a sua esperança e otimismo.

Eu cultuo a minha esposa. Se pudesse, eu lhe faria um altar, não porque ela é uma santa, mas porque ela é um exemplo para mim. Encontrei meu parâmetro ideal, minha referência inspiradora.

Às vezes, eu a observo sem que ela me note, e sou dominado pela emoção, por um peso indescritível de ternura nos ombros: eu me reconheço abençoado, sortudo, escolhido. É uma felicidade de destino, quando nós concluímos, em raros momentos da vida, que estamos no lugar certo e ao lado da pessoa certa. Nem me aproximo, para não estragar a coreografia espontânea de sua presença. E me enlevo em pensamentos: como ela pode ser tão suave, tão meiga, tão doce? Tiro fotografias mentais dela comendo, dela assistindo à televisão, dela lendo jornal, e guardo os arquivos na pastinha da minha saudade.

Beatriz sempre me surpreende. Em sigilo, de modo independente, ela criou uma arrecadação entre os amigos e familiares para as vítimas das enchentes no Rio Grande do Sul, meu Estado natal. Descobri as anotações em folha de ofício com o Pix de todos que se prontificaram a colaborar: dezenas e dezenas de contribuições. Um exército de anjos na ponta de sua caneta azul.

Em conchavo com as suas colegas, transferiu o montante para compra de água, itens básicos, suprimentos. Não me chamou, já antevendo quanto eu me mantinha engajado em minhas frentes. Agiu por sua conta, dando valor ao meu apego, pois vivo em eterna ponte aérea entre Porto Alegre e Belo Horizonte.

Nunca vi uma pessoa entender tanto o meu desamparo. Eu virei um porco-espinho nas últimas semanas, com dificuldade até para abraçar. Se Beatriz tocava em minha pele, eu me defendia, eu reagia com medo. Houve compreensão tácita de sua parte, houve irrestrito apoio, houve respeito de longe, houve carinho e cuidado invisíveis. Ela não estranhou o meu desespero. Perguntava apenas se eu precisava de algo. Enquanto eu não era capaz de verbalizar a minha dor, ela organizava iniciativas de doação. Não sei nem metade do que ela empreendeu. Não tenho nem noção. Ela não quis expor, dizendo que se tratava de uma obrigação socorrer os flagelados do maior desastre ambiental do país, com centenas de desaparecidos e mortos.

Caráter é um chamado do coração a que você não demora a responder.

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