FABRÍCIO CARPINEJAR

A roça da nossa infância

A roça é a fé em estado bruto. Preciso dela para buscar mais de minha infância, quando o estoque da meninice acabou.


Publicado em 22 de maio de 2020 | 19:01
 
 
 
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A roça é a fé em estado bruto. 

Preciso dela para buscar mais de minha infância, quando o estoque da meninice acabou. 

Lá, sou um outro homem, menos arrogante, menos sabido, com menos respostas para tudo. 

Eu abraço o mundo de braços abertos. 

É tirar o leite de vaca, é buscar os ovos mornos do galinheiro, é o cheiro de palha e mato nebulizando as narinas. 

A luz parece mais honesta, o som dos córregos parece mais cristalino, as conversas parecem mais autênticas, eu durmo melhor com a brisa sussurrante, desperto todo disposto pisando com o pé direito nas tábuas soltas. Aliás, escuto a minha primeira pisada acordando a casa, os pregos saltam de felicidade com o meu peso. 

Calço as botas, ponho o casaco e permito a neblina molhar as bainhas da calça. Atravesso o horizonte azul, como se a pintura de Deus ainda estivesse com a tinta úmida. Cumpro as minhas expedições pelo campo, reconhecendo as árvores como irmãs mais velhas. Juro que vejo as acácias me cumprimentando quando passo, mexendo as suas cabeleiras crespas. 

Não me assusto com os barulhos das portas batendo, das janelas fechando, como na cidade. Não tenho medo de assalto, de perigo, de alguém entrando sem licença. 

Há uma única porteira e um cadeado solto. Os gritos dos vizinhos são a campainha possível. 

As estradas levantam a terra vermelha, os motoristas se orgulham dos carros sujos. 

Vou fazer o supermercado na minha horta, escolhendo os legumes e as verduras pela robustez da cor. Já aproveito para tentar salvar os produtos pisados, machucados, pela corrida dos bichos. As notícias se resumem ao que dará pé ou não no dia seguinte. 

O fogão a lenha nunca está extinto, como uma lua que não cansa nem com a claridade. 

A comida tem o gosto do solo, tem o sotaque das raízes. Ela fala a mesma língua do meu paladar. É cozinhar que vem na memória uma viola caipira. Ao revolver os caldos, o angu e o tropeiro, surgem dez cordas de aço na colher de pau. Uma música reboa de dentro, como um lamento saudoso dos sogros. 

A regra é nem esfregar o fundo das panelas de ferro, passar apenas uma água, para não estragar o fundo ancestral da família, a alegria dos banquetes que foram feitos em seu bojo. 

Preparo almoço para não sobrar nada, porque o interior abre o apetite. Haverá depois a rede para ajeitar o excesso pelo balanço. 

Levantarei de novo da pestana só com o aroma do café. O grão torrado de café é a alma da tarde. 

Não sofro com os tapetes sujos, ou a desordem da varanda. 

O tempo está sempre a meu favor. Com sol, recebo o coral do bem-te-vi, do pássaro preto e do sabiá. Com a chuva, ganho uma orquestra de graça nas calhas e telhas. 

Mineiro que fica perto do seu chão jamais cai. 

A vida é desinformada e certa. Minha esperança é juntar gravetos e cortar as achas da lenha para alcançar o fogo mais lindo e firme e aquecer os olhos dos filhos e da esposa. Isso me basta: arder alto de ternura. 

Não me preocupo com o futuro, o presente transborda, e o passado não mais me falta.

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