FABRÍCIO CARPINEJAR

A segunda bolsa

'Todas as suas versões, todas as suas quatro estações estão reunidas no bagageiro e no porta-luvas'


Publicado em 09 de julho de 2022 | 03:00
 
 
 
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Não preciso mexer na bolsa de minha mulher para saber o que tem dentro dela. Nem cometeria tal desatino, nem ousaria tamanha e imperdoável invasão de privacidade. 
 
Basta entrar no carro dela. É a extensão da bolsa. É uma segunda bolsa. Tem tudo dentro. Tem creminhos, barras de proteína, maquiagem, óculos de sol, cadeira de praia, canga, vestido de festa, botas, saltos, roupa de banho, toalha, lona, guarda-chuva, lanterna, liquidificador. 
 
Todas as suas versões, todas as suas quatro estações estão reunidas no bagageiro e no porta-luvas. 
 
É um camarim, um portal de troca de figurino. 
 
Quando entro nele, tenho que pedir licença. Os bancos de trás e do carona estão ocupados com pastas, com sacolas, com mochila de academia. Beatriz nunca anda sozinha, mesmo quando anda sozinha; dirige acompanhada de seu arsenal essencial para o ano inteiro, nunca para um único dia.
 
Ela se espalha pelo espaço, deixando seus objetos ritualísticos ao alcance da mão em caso de uma necessidade súbita. Não quer perder tempo tendo que escolher música ou catando a sua coqueteleira com suco verde. É prática porque jamais se esquece de alguma coisa. O carro já oferece uma vida alternativa, operando milagres, com os seus tentáculos prontos para servi-la.
 
Ela jamais esvazia o carro. É feito para emergências, para a pressa, para a hipótese de sair do serviço e ter que ir direto a um evento. 
 
Os maridos deveriam entender que as suas esposas, quando partem ao trabalho, podem não voltar. Já estão com a bagagem pronta no veículo. Estão sempre preparadas para longas viagens, para o divórcio, para nunca mais. 
 
Extremamente oposto é o entendimento do carro para o homem, que reproduz a magreza de documentos da sua carteira. É uma pobreza de espírito: somente com cartão de crédito e identidade. No máximo, terá garrafinhas de água pela metade jogadas nos cantos. 
 
Para o software masculino, carro não é pessoal, mas ambiente funcional e despojado, sem nenhum enfeite, só com o básico do básico: o triângulo, o macaco hidráulico e o estepe. 
 
O carro feminino é casa, o do homem é hotel. Mulher mora no carro, o homem apenas se desloca. 
 
Prefiro ir com ela para conhecer um pouco mais de sua personalidade a que ela vá comigo e desvende a minha escassez de recursos e mordomias. 
 
Até porque ela pilota muito melhor do que eu, capaz de dar voltas na quadra de ré e segurar o carro na lomba sem suspiro nenhum entre os pedais da embreagem e do freio. 
 
Como gaúcho educado em linhas retas, não há como concorrer com as suas habilidades de tração e equilíbrio. Beatriz aprendeu a dirigir nas ladeiras belo-horizontinas das ruas São Benedito (São Marcos), Copérnico Pinto Coelho (Santo Antônio) e Expedicionários (Conjunto Taquaril), as três com mais de 50% de inclinação. Em Minas, a CNH é brevê: você tem que voar entre os morros. 
 
Resta-me ser a sua quieta e comportada baliza.

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