FABRÍCIO CARPINEJAR

Coisas da roça

Se você comenta que alguém fez uma comida de roça, é a exaltação da refeição, indício de prato caseiro, cheiroso, maternal, um banquete favorito

Por Fabrício Carpinejar
Publicado em 26 de dezembro de 2020 | 03:00
 
 
 
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É comum afirmar que Belo Horizonte é uma grande roça. O que é bom: uma cidade onde todos se conhecem, que mantém a hospitalidade interiorana, o frescor dos encontros, a força do boca-a-boca.

Roça é uma palavra complexa, usada para o elogio e para a crítica, dependendo do contexto. Poderia receber um dicionário à parte, termo pujante, entremeado de sinônimos e entendimentos particulares no mineirês.

Há um grande risco de interpretar errado, porque a situação é que definirá o seu significado.

Se você comenta que alguém está vestido para roça, é uma depreciação. Não está à altura do acontecimento. Colocou qualquer roupa, não foi caprichoso. Saiu com os trajes de quem fica em casa ou vai mexer na horta.

Se você comenta que alguém fez uma comida de roça, é a exaltação da refeição, indício de prato caseiro, cheiroso, maternal, um banquete favorito. Não poderia ter maior declaração de apreço. Comida de roça é um cardápio simples - fígado com jiló, frango com quiabo, tropeiro, leitão à pururuca com farofa - feito com excelência.

Se você comenta que o sinal é da roça, representa uma reclamação. O celular não tem sinal, não há como acessar a internet, resumo de que se encontra apartado da civilização, em condição remota, numa fazenda ou sítio afastado do centro urbano.

Se você comenta que vem se sentindo na roça, é um monumental reconhecimento de bem-estar, da paz do recolhimento. Quer dizer que nunca se viu tão à vontade, em contato com a natureza, com o canto dos pássaros, com direito à preguiça e às trilhas da desobrigação, ao café tirado no coador de pano e ao bolo esfriando na janela.

Se você comenta que isso está parecendo uma roça, tem jeito de protesto, chama atenção da desorganização, do caos e da desordem, que não vem conseguindo ser entendido e se comunicar. É como se estivesse  isolado.

Se você comenta que o queijo é da roça, dá um selo de qualidade para a compra, que é um produto artesanal, afetuoso, que poucos conhecem, um achado fora do comércio, de produção familiar, sem corante nenhum, com o sabor do leite mais fiel à origem.

Se você comenta que o trem demora como na roça, destaca a lerdeza de alguma entrega. O trem serve para designar qualquer coisa na Terra para o mineiro. Sofrerá com a lentidão de um processo, de uma resposta, já que a roça é um indicativo de lonjura.

Se você comenta que tem saudade da roça, é uma manifestação de carinho com a infância, a uma vida menos complicada, fácil e farta, quando tinha ainda em si todos os sonhos do mundo.

Se você comenta que não acha nada nesta roça, é uma cobrança para a mania de colocar os objetos fora de lugar. Na roça, as despensas são inventadas, guarda-se utensílios nos locais mais improváveis.

Se você comenta que gosta mesmo das pessoas da roça, é a afeição pura pelo trato sincero e jamais dissimulado, de quem sabe receber, abrir a sua casa e falar com o coração.

Para viver no espírito roceiro, deve-se entender antes do que o mineiro está falando.

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