FABRÍCIO CARPINEJAR

O verão do mineiro

Mineiro tem uma vocação de turista, ainda que apegado às suas raízes.


Publicado em 17 de março de 2021 | 20:22
 
 
 
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Mineiro não tem praia, não tem ambiente litorâneo, mas nunca vi gente tão marítima.  

O cercamento das montanhas é um detalhe.  

Os botecos invadem as ruas, como se fosse uma orla disputada, uma passarela direto para as ondas. Bebe-se tanto quanto num verão. É eternamente verão na sede de viver do povo daqui. Não duvido que a média de chope e cerveja por pessoa ultrapasse qualquer paraíso nas areias.  

O que ajuda a compor o cenário escaldante é a proliferação de sorveterias. Cada esquina tem uma melhor que a outra.  

Ou como explicar a abundância de vendedores de picolé nas praças? Ou como justificar o dominó de filtro solar nas estantes dos caixas das farmácias?  

Mineiro sempre está com calor, derretendo.  

Os figurinos nos bairros espelham o despojamento: regatas, saias, blusas, calção, bermuda. Há um calorão por dentro dos costumes. Não difere de quaisquer férias à beira-mar.  

Há também o hábito praiano, incorrigível, dos pés descalços. Minha esposa, por exemplo, foge das minhas advertências de que se vai gripar ou adoecer. Já tentei levar o chinelo para a sua frente, carregar o chinelo do quarto para sala, na tarefa ingrata de caddy de seus chinelos, mas não vinga a minha gentileza. Ela não usa. Precisa da liberdade dos seus dedos em contato com o piso, com o solo.  

Se arrumar uma grama por perto, ficará nas nuvens. Quintal é a sua terapia e a renovação dos votos da infância.  

Cumpre o caminho de Santiago de Compostela pelo interior da residência. Alguma promessa fez em segredo. Só pode.  

Compra pares de chinelo somente para colecionar, é o que parece. Encontram-se intactos no armário. Exalam o cheiro de borracha das lojas.  

Para mim, de condicionamento gaúcho, é estranho: usamos meia com chinelo devido ao inverno. Às vezes, mais meia do que chinelo, que ficam encardidas para o resto da vida.  

Eu não caminho sem proteção. A cama é o meu único refúgio de nudismo.  

À noite, os pés de Beatriz estão mais sujos do que o pano que usei para esfregar o piso. E ela não se importa. Realmente sente prazer de desfilar pelo seu litoral imaginário. Não gosta de se ver presa ou arrastando as tiras.  

Mineiro tem uma vocação de turista, ainda que apegado às suas raízes. Trabalha com as vestes mais descansadas, livrando-se do peso dos apetrechos.  

Não importa onde esteja, vai se despindo dos acessórios, dos excessos. Até restarem a sunga e o biquíni.  

Estão prontos para uma piscina. A sensação térmica deles não deve convergir com a dos meteorologistas.  

Quando falo com os meus comparsas por chamada de vídeo no final de semana, estão sem camiseta nenhuma. Quase desligo jurando que flagrei intimidades do quarto com as esposas. Mas, não, andam mesmo com o orgulho do peito peludo, um bando de ursos, descompromissados com a vaidade. Não gastam roupa limpa nas folgas.  

Já eu nunca atenderei nenhuma câmera sem camisa. Os colegas ficam rindo do meu puritanismo. Sou uma carmelita entre eles.  

Mineiro nasceu para a praia. Ainda que seja uma praia mental. Com a água dos olhos.

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