Há 5 anos, num dia de julho, Ennio Morricone nos deixava. Trivial acidente doméstico: ao descer uma escada, escorregou e bateu a cabeça. Complicações do tombo e a idade, 91 anos, levaram embora um gênio musical incomparável de nosso tempo.

Talvez pelo fato de também estarmos em julho, o Prime Vídeo exibe o documentário “Ennio, il Maestro”, produzido em 2021 como um merecido e oportuno tributo ao mestre. A direção é de um grande parceiro, amigo íntimo de Morricone, Giuseppe Tornatore - o qual, com seu deslumbrante “Cinema Paradiso”, levou o Oscar de Melhor Filme Internacional em 1990. Nessa obra-prima, a divina trilha de Ennio até hoje causa nós na garganta e olhos marejados em milhões, grupo no qual me incluo.

Nascido em Roma, o jovem Ennio sonhava ser médico, mas eram tempos difíceis. A Europa sofria as carências do período entre guerras e seu pai, um modesto músico trompetista, logo conduziu o filho pelas mesmas pautas. Tocar o trompete – fosse nos bailes, nas bandas ou festas religiosas – pelo menos garantia as despesas básicas. Dominando o instrumento com brilhantismo, Ennio entrou para a Academia Nacional de Santa Cecilia aos 12 anos, onde estudou composição clássica e música coral. O esforço deu frutos: em pouco tempo ganhou lugar numa importante orquestra italiana e sua carreira de compositor, arranjador e maestro decolou.

Ennio escolhera o caminho da música clássica, mas foi o cinema que expandiu seu imensurável talento. Tudo começou com um convite do diretor Sergio Leone para compor as trilhas dos seus “westerns espaguetes”, faroestes italianos dos anos 1960 que trouxeram às telas astros em ascensão como Clint Eastwood, Henry Fonda, Claudia Cardinale e Charles Bronson. Assim nasceram as trilhas de “Por um Punhado de Dólares”, “Três Homens em Conflito” (considerada uma das músicas mais influentes do cinema, faz parte do Grammy Hall of Fame) e, certamente, o mais famoso – “Era uma Vez no Oeste”. O tema principal deste, com um solo romântico da cantora luso-italiana Edda Dell’Orso, totalmente inusitado naquele árido cenário do bangue-bangue, marcou uma revolução na linguagem cinematográfica.

No documentário do Prime Vídeo não só Clint Eastwood como muitos artistas, atores, diretores e ex-colegas de Morricone tecem elogios à sua genialidade. Quentin Tarantino, apaixonado pela obra do maestro, suplicou-o por uma trilha para seu “Os Oito Odiados”, filme que rendeu um Oscar a Ennio em 2016. John Williams – atual virtuoso da especialidade –, Quincy Jones, Bruce Springsteen e Pat Matheny também participam do registro histórico, trazendo seus aplausos e reconhecimentos. (A propósito: no Youtube, Pat Matheny solando “Cinema Paradiso” num violão acústico, acompanhado de Charlie Haden no contrabaixo, é algo extasiante).

Quando perguntado sobre quantas trilhas tinha criado, Morricone se esquivava: “não faço ideia”. Além de muitas produções só exibidas no exterior, no Brasil, entre outras, ouvimos suas composições em “Os Sicilianos”, “1900”, “Sacco e Vanzetti”, “A Missão”, “A Gaiola das Loucas”, “Cinema Paradiso”, “Malena”, “A Lenda do Pianista do Mar”, “Os Intocáveis” e em faixas de “Kill Bill” e de “Django Livre”. No total, foram cerca de 400 partituras para cinema e televisão, além de mais de 100 obras clássicas.

Vejam “Ennio, il Maestro” no Prime - pausa reconfortante, recheada de harmonias, melodias refinadas, arranjos e acordes da mais pura, elaborada, inteligente e emocionante arte musical. Certamente, será ainda um contraponto bem-vindo nesse momento em que nossos ouvidos são agredidos por monstruosidades toscas e estupidificantes; apologias à violência, à pornografia, à vulgaridade e até às armas – barbaridades que farsantes têm o descaramento de gravar e que infelizes e trogloditas ouvem com prazer, como se fossem “músicas”.