FERNANDO FABBRINI

A Coisa

Redação O Tempo


Publicado em 23 de março de 2017 | 03:00
 
 
 
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Como foi que a Coisa começou, vovô?

– Ah... Faz muito tempo, meu querido... Muito tempo...

– Conta, vai...

– Bem... Era uma vez dois homens e um pão. Os homens tinham terminado o trabalho, e era hora de comer. O pão era grande, mataria a fome de ambos. Porém, um deles pensou: “Se eu não dividir com ele e ficar com este pão só para mim, amanhã terei o que comer também, sem trabalhar”. E assim o fez. Deixou o amigo com fome. O céu escureceu na hora, surgiram relâmpagos, trovões. A Coisa tinha nascido.

– E depois?

– Depois... Veio vindo, vindo, como num jogo de dominó, uma Coisa caindo e empurrando a outra Coisa, dando a maior força, sabe como?

– Hum... Entendi.

– Uma vez, na Idade Média, a Coisa mandou pra fogueira uma porção de gente, com medo de perder o poder. Aliás, já lhe expliquei que a Coisa e o Poder só andam juntos, fofocando um no ouvido do outro, lembra? A rainha trocou a colheita de trigo por vestidos caros e joias, deixando o povo com fome. Coisas da Coisa. No duelo, o cavaleiro subornou o ajudante, que botou veneno no vinho do outro cavaleiro, que perdeu a luta. A Coisa estava lá na plateia, comendo pipoca e batendo palmas para o vencedor.

– Mas foi tudo naqueles tempos?

– Não, veio vindo, sem parar, feito uma avalanche, ano após ano, século após século. A Coisa tem lugar preferencial nos gabinetes de todos os ditadores da história. A Coisa está ali para orientá-los, dizendo que todos na rua devem pensar igual, obedecer sem reclamar, acreditar nas coisas que eles mandam. Como não dá certo, a Coisa sempre sugere que o ditador extermine os rebeldes. E assim acontece.

– Puxa!

– A Coisa faz de tudo, é muito talentosa. Por exemplo: um dia um pobre coitado saiu da roça e veio tentar a vida na cidade. Como não tinha onde morar, fez uma casinha com restos de madeira no alto de um morro. O governador tinha dinheiro para erguer uma casa decente e escolas e hospitais para aquela família humilde. Mas bateu um papo com a Coisa, deixaram do jeito que estava. E ele usou o dinheiro para comprar uma cobertura em Ipanema.

– Ipanema? Então a Coisa continuou aqui no Brasil?

– Não só continuou, como a Coisa ganhou muita força no Brasil... Aqui, a Coisa se espalhou pra todo lado, se meteu em tudo, mexeu, se escondeu, fez plástica, mudou de cara. Agora só anda de carro importado, blindado, tem conta na Suíça, bebe champanhe e gasta milhões com futilidades. Só que o dinheiro é roubado. Não pertence à Coisa, pertence à coisa pública.

– Mas ninguém faz nada?

– Bem, nem todos caem no papo da Coisa. Quando você tomou pau no vestibular, o que fez? Estudou mais, ralou até passar, não foi? Mas outros carinhas de sua idade preferiram tomar um chopinho com a Coisa. Ela fez a proposta: uma grana preta em troca das respostas das provas. Não perde uma chance, a Coisa.

– Nossa! Que Coisa esquisita!

– Está cheio de pai e mãe por aí que prefere não se preocupar com a Coisa, diz que é tudo normal, besteira, chatice. Enquanto isso, a Coisa não perde tempo. Pega a meninada, leva para os shoppings, torra no cartão de crédito, só coisa inútil. Quando não rola grana, quando acaba, a Coisa ensina a arrumar de qualquer maneira. Ensina a furtar, a roubar, a ficar doidão com droga e assaltar, matar, estuprar.

– Que droga...

– Pois é, mas tem gente que adora a Coisa. Vive em função da Coisa, só fala na Coisa, só pensa nela. Acha que a Coisa é boba? Que nada!

– Fala mais...

– Quando alguém descobre a Coisa e suas mutretas, ela finge que está indignada... Dá entrevista na TV dizendo que “repudia veementemente quaisquer insinuações irresponsáveis dirigidas à Coisa...” Etecetera. E tem gente que acredita.

– Puxa, que Coisa esperta!

– Muito, muito esperta. E muito rica. Por isso, vai ficando cada vez mais poderosa. E cheia de amigas, aliadas! Tem a Vaidade, a Safadeza, a Cara de Pau, a Corrupção... Turminha brava. Por isso, vou lhe avisando...

– Hum?

– Presta atenção, menino. Não acredite em tudo que lhe dizem. Atrás de muita coisa tem Coisa.

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