FERNANDO FABBRINI

Cofres controlados

Rouanet só pra quem precisa


Publicado em 31 de março de 2022 | 03:00
 
 
 
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Outro dia, na onda incansável da informação digital, uma cantora postou um poema de sua própria lavra. No monólogo, dirige rimas e provocações sutis àqueles que, segundo ela, “não precisam mais de artistas”. Não colou: nas entrelinhas, qualquer um percebe que trata-se de mais uma choradeira frente ao atual rigor na concessão de patrocínios da lei Rouanet, uma das medidas adotadas pelo governo para reduzir custos. A moça usou uma questão pessoal, maquiou-a esperta e convenientemente e levou-a ao palco da internet em busca de aplausos.

A gente até entende a suspeita inspiração dos versos. Vários artistas, agentes e intermediários engordaram suas contas bancárias com essa mamata durante os governos de esquerda. Muita porcaria foi subsidiada com o meu, o seu, o nosso dinheiro. Também é compreensível que a autora insira acordes ideológicos no seu lamento, participante inflamada que foi da campanha do ex-presidiário derrotado nas eleições e do “ele não”. No entanto, percebi no desabafo exageros imperdoáveis e pequenos delírios que merecem ponderação.

O Brasil é uma nação de gente sensível, amante da música, da dança, das cores de Tarsila, dos poemas de Drummond e Coralina, das tramas de Machado de Assis, do romantismo apaixonado de Vinícius. Um brasileiro é o resultado da soma dos sentimentos de muitas culturas que enriquecem nossas almas com abençoada diversidade.

Generalizar a coisa, pintando um país árido e selvagem que ela simulou para disfarçar seus apertos financeiros pega mal; é desonesto. O que muitos brasileiros não suportam mais são os rios de dinheiro que sustentaram artistas e amigos do poder, num país com tantas prioridades esquecidas, urgências não-atendidas e carências vergonhosamente desprezadas. Ainda assim, concordo com a destinação dos benefícios aos artistas iniciantes, como está sendo feito, estimulando os jovens talentos. Já as fortunas despejadas em figurões consagrados são asquerosas - que sumam de vez.

Na lamúria, buscando embasar seu desencanto, a artista citou Van Gogh, Gonzaga, Tom Jobim e até Diadorim. Ficou meio esquisito e um tanto engraçado. Van Gogh passou fome a vida inteira e jamais recebeu um mísero florim dos governantes holandeses para comprar uma tela ou um tubo de tinta. Gonzaga e Tom fizeram carreira e sucesso pelos próprios meios – talento puro, ganhando plateias, vendendo discos, vivendo de suas artes. O personagem Diadorim pode até ter sido brindado por uma ajudinha oficial - de tabela, digamos - já que o mestre Guimarães Rosa foi embaixador e dali tirava seu salário de servidor público. Mas Rosa brilharia mesmo sem isso.

Um amigo que trabalha desde pequeno, ralando muito até construir sua empresa, insiste numa questão: “por que determinada classe deve ser bancada com verba pública? Não seria paternalismo e preconceito considerar os artistas seres frágeis, inferiores, incapazes de se proverem? Pelo contrário: são pessoas com sensibilidade e talento para vencerem na vida. Mas requer esforço, perseverança, como qualquer outra profissão, né?” Dá o que pensar. E de minha parte, acho que artista, mesmo, hoje e na vida real, é quem sustenta uma família com salário mínimo. São os mestres do malabarismo, da criatividade, do improviso e da esperança.

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