Desde jovem, Jeffrey Epstein cultuava o estilo típico dos espertalhões: ambição a mil e moral a zero. Foi nos números que ele se esbaldou, acumulando bilhões de dólares em investimentos, sociedades, propriedades de luxo, aviões, iates, carros. Em cerca de 30 anos construiu uma das maiores fortunas pessoais dos EUA dos anos recentes.
Seu talento pernicioso gravitava em torno de conchavos, tráfico de influências, amizades com o submundo, suborno de autoridades - menu completo que costuma acompanhar essas biografias polêmicas. Como se não bastasse, Jeffrey era um pervertido sexual, pedófilo, predador de adolescentes.
Ele possuía mansões nos mais chiques endereços de Nova Iorque e Paris; fazendas espetaculares no oeste americano; uma ilha deslumbrante no Caribe e uma casa cinematográfica em Palm Beach. Principalmente nessa última praticava abusos contra as jovens – sempre bonitas, de famílias humildes e deslumbradas com a riqueza em volta. Após acusações de assédio e estupro, batalhas judiciais e finalmente preso, ele foi encontrado morto na cela em 2019; um “suicídio” duvidoso. Talvez, queima de arquivo.
A vida e a obra deploráveis desse personagem são temas de uma minissérie da Netflix que ganhou audiência no isolamento social. A produção é interessante; reúne testemunhos de ex-policiais, de advogados e das protagonistas: uma dezena de mulheres – mocinhas de então – que sucumbiram ao furor sexual de Jeffrey.
Elas contam versões bem parecidas. Atraídas pela promessa de ganharem 200 dólares “fazendo massagens” nele, terminavam na cama. Depois de adultas, resolveram processá-lo, representadas por advogados célebres e com ampla cobertura da mídia.
O espectador mais crítico e atento logo perceberá na série a repetição de certo tipo de narrativa superficial, tendenciosa, bastante frequente nessa época do “politicamente correto”. A produção ignora ou minimiza – de propósito? – sutilezas fundamentais do comportamento dessas jovens mulheres no passado.
As vítimas são reverenciadas no papel de “sobreviventes”, letreiro aplicado pelo diretor quando as enquadra em closes dramáticos. Emocionadas, às lágrimas, enumeraram as atitudes “inadequadas” (palavra frequente) do sedutor entre quatro paredes. Tudo bem: é compreensível que uma adolescente tola, sozinha e amedrontada, diante de um homem poderoso, renda-se à cilada. Mas... apenas uma vez, concordam? Uma moça chocada com um encontro desagradável aceitaria convites posteriores? Ou entraria para o círculo de amizades do agressor?
A surpresa é que todas as autoras dos processos confessaram terem retornado à mansão seguidamente - algumas, por mais de dez anos, submetendo-se às “atitudes inadequadas” que já conheciam e a troco de dinheiro. Muitas viraram cúmplices de Jeffrey aliciando amigas para o fim escuso. Ou seja: beneficiaram-se das atenções do bilionário durante a juventude; viveram os prazeres do jet-set; frequentaram festas, encontros secretos com ele e seus amigos famosos. Tempos depois, resolveram processá-lo. Espere aí: não há algo esquisito nisto?
A exceção vem de um curto (e, infelizmente, secundário) depoimento de uma modelo profissional. Interessada numa seleção para o elenco da Victoria Secret, grife que fazia parte dos negócios de Jeffrey, ela foi entrevistada a sós, num quarto de hotel. O bilionário se insinuou; a modelo percebeu a emboscada, repeliu-o, mandou-o às favas e – o mais importante - nunca mais o procurou. Não é assim que se age?
No país de Jeffrey Epstein há o provérbio “it takes two to tango” (são necessários dois para dançar o tango) equivalente ao nosso “quando um não quer, dois não brigam”. No momento em que a civilização se posiciona contra as agressões às mulheres, a série tropeça em imperdoáveis omissões e disfarça hipocrisias ao longo de um roteiro que beira a pieguice.
Aceitar a violência e permanecer submissa a ela – sob qualquer desculpa - sugere cumplicidade interesseira. E levanta suspeitas sobre o caráter e a motivação das chamadas “sobreviventes” do escandaloso episódio.
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