FERNANDO FABBRINI

E a nave foi

Empurrado pelos que embarcavam, debaixo de gritos e safanões, acabei acuado num canto do jardim, restando-me observar os felizes portadores de tíquetes


Publicado em 22 de novembro de 2018 | 03:00
 
 
 
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Acordei assustado, quase caí da cama. O sonho tinha sido incrivelmente real, inquietante. Cambaleando, arrastei-me até a sala segurando as calças do pijama e atirei-me no sofá. A cabeça ainda zoava. Bebi um copo d’água, o coração disparado. Pouco a pouco, fui montando na cabeça as cenas do sonho, como se estivesse editando um filme.

Primeiro, a luz esverdeada tomou conta do quarto. Depois da luz, a janela se abriu sem nenhum ruído. E ela entrou, solenemente. Sem cerimônia, assentou-se sobre a mesinha, cruzando as pernas, uma a uma. Eram seis perninhas, eu contei.

– Boa noite, terráqueo. Trago uma mensagem urgente! – disse isso enquanto digitava num tablet sobre o colo. Vi quando ela deu “send” graciosamente, com a pontinha do dedo.

– Enviado! Por favor, confira no seu WhatsApp, sim? – E saiu voando pela janela.

Esfreguei os olhos, pulei da cama e agarrei o celular. Nova mensagem! “Supernave interestelar pousando na praça principal domingo. Missão secreta, urgente, recolhimento dos escolhidos. Compareça”.

– Ora, foi só um sonho besta – pensei.

Porém, durante o resto do dia, não tirei a coisa da cabeça. Pensativo, olhava o céu de esguelha. Nossa! Quem sabe não teria sido um alerta tipo fim do mundo? Um juízo final pós-moderno? Claro, era isso! No lugar de anjos e cavaleiros de fogo viria uma espaçonave para separar o joio do trigo. Sim! Muito mais adequado, como não?

Na manhã seguinte – o tal domingo – tomei uma ducha demorada. Preferi não tomar café, porque sempre gostei de serviços de bordo. O que seria? Ovos à Júpiter? Pudim de leite Via Láctea? Tomei o rumo da praça principal. Foi só caminhar três quarteirões para sentir as pernas bambeando. As ruas estavam apinhadas! Homens, mulheres, crianças corriam esbaforidos numa só direção. Puxa, era verdade! Assim como eu, outras pessoas tinham recebido a mensagem! Abrindo espaço às cotoveladas, pude então vê-la. Pousada no canteiro central, imensa, cheia de luzes, lá estava a nave. Foi um sufoco para alcançar a plataforma de embarque. Seres brilhantes, idênticos à donzela de meu sonho, controlavam tudo.

– Seu tíquete, senhor? Posso vê-lo? – perguntou-me uma alienígena gentil e elegante, de tailleur, lenço de seda ao pescoço e scarpins.

Tíquete? Mas qual tíquete? Ninguém tinha me falado disso! Para meu desespero, reparei que muitos em volta seguravam estranhas fichas plásticas, luminosas, com símbolos ininteligíveis. Eram os malditos tíquete – e eu não tinha recebido o meu! Empurrado pelos que embarcavam, debaixo de gritos e safanões, acabei acuado num canto do jardim, restando-me observar os felizes portadores de tíquete, embarcando pela rampa iluminada.

A fila, imensa. Mas... Não era possível! Olha lá! Aquele cara, conhecido traficante da porta do colégio, acenando sorridente com o tíquete na mão? O político safado, o tal que meteu a mão na grana das creches para colecionar Ferraris? Todas as dondocas da cidade, cobertas de joias, carregando bolsas Louis Vuitton pele de onça, escoltadas pelos sorridentes maridões? Aquela cantora do gênero funk ostentação? O pastor de almas, dono de 300 igrejas e cinco jatinhos?

Indignado, percebi que até numa hora dessas o poder econômico, os jeitinhos e os privilégios falavam mais alto. Como sempre, estariam excluídas as pessoas comuns, honestas e trabalhadoras como eu e outros que contemplavam a cena, desolados. Numa última tentativa, aproximei-me da aeromoça azulada que recolhia o tapete, enquanto a nave acelerava as turbinas, sinalizando decolagem imediata.

– Sem tíquete não tem jeito? – supliquei.

– Infelizmente, não, senhor – disse e piscou um dos três olhinhos, como se segurasse o riso.

Só então notei que a espaçonave tinha um formato familiar. Vista assim de longe, por detrás, subindo em direção ao infinito, o objeto voador amarelo assemelhava-se curiosamente a um imenso caminhão coletor de lixo.

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