FERNANDO FABBRINI

Efeitos colaterais

A natureza e as pessoas vão se transformando muito além de nossa imaginação


Publicado em 13 de maio de 2020 | 14:32
 
 
 
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A casa onde moro é de 1926. Meu pai a construiu para se casar, naquele tempo quando um modesto ninho de amor era requisito essencial de um lar feliz. Há alguns anos fizemos uma boa restauração: reforços estruturais, novo telhado, redes de água e energia, pintura geral e outras melhorias. Pela data da planta original trata-se da primeira casa construída nessa rua do bairro. O resto era mato, riachos, goiabeiras, ar puro e delícias naturais que ainda pude aproveitar na infância, correndo por lá descalço, com a meninada.

Hoje, estamos rodeados de prédios. Das janelas iluminadas vejo pessoas absortas, contemplando o verde dominante do nosso velho quintal que, com minhas irmãs, faço questão de cuidar. Aqui viçam mangueiras, romãzeiras, pitangueiras, helicônias e bananeiras de cachos surpreendentes pelo tamanho e fartura; frutas compartilhadas com vizinhos e amigos a cada safra. Há também uma pequena horta com o básico salsa e cebolinha. O sol marca presença desviando-se da sombra dos prédios e convidando-nos ao não-fazer-nada esticados numa rede de sisal sergipana.

Volta e meia alguém pergunta: “puxa, por que vocês não vendem isso? Deve valer uma boa grana!” Certamente sim, mas dinheiro não é tudo na vida e preferimos preservar a propriedade para a geração seguinte enquanto desfrutamos desse privilégio ensolarado, colorido e acolhedor.

Recentemente a Prefeitura providenciou um sobrevoo pela cidade no encalço de novas áreas construídas para atualizar o IPTU - e fomos devidamente sobretaxados pelas obras realizadas; subiram o imposto. Tudo bem, vamos pagando-o parceladamente apesar das dificuldades financeiras trazidas pela pandemia. No entanto, penso que a administração municipal, tão zelosa nas questões ambientais deveria, em compensação, considerar os benefícios gratuitos providos por nossa pequena-grande área verde à comunidade. Vale um desconto ou não? Há anos contribuímos com ar puro à vizinhança e servimos de abrigo e pit-stop para aves, borboletas, abelhas.

E chegamos onde eu queria. Desde o início do chamado lockdown cenas novas passaram a suceder no nosso quintal. No início, foram os passarinhos. Habitualmente frequentado apenas pelas rolinhas, bem-te-vis ariscos e raros pardais, o espaço aéreo agora é povoado por espécimes inéditas: saíras, bicos-de-lacre, canários, corrupiões, maritacas e outras que minha ignorância ornitológica é incapaz de identificar – só fotografo e pesquiso imagens na internet. Novos tipos de borboletas também chegaram. Nunca vimos tantas e tão diferentes; visitantes de cor, tamanho e formato inéditos, atarefadas no seu trabalho de pular entre as flores, sugar o néctar e em seguida voar para não sei onde, nas trilhas dos mistérios divinos.

No plano humano, os efeitos colaterais da pandemia vêm também dando assunto para boas conversas (lives assépticos no Whatsapp, claro) e respectivas risadas. Uma amiga, da categoria workalchoolic prestes a se aposentar, já está pensando em antecipar o desligamento, trabalhando tranquilamente em casa, dando tempo ao tempo e simplificando a vida. “Nossa! Não fazia ideia de como era tão bom isso” – confessou.

Outro amigo – que mal fritava um ovo sem queimá-lo – mergulhou em receitas culinárias para fugir da mesmice das marmitas e vem surpreendendo a exausta esposa nos pratos originais que inventa. Famílias lavam louça em escala de revezamento e já consideram adotar o hábito daqui para diante, reduzindo despesas. Um ex-colega de trabalho voltou a escrever, frenético, prometendo um livro de poemas após o pesadelo do vírus chinês.

Na roça, dizem que é assim mesmo: o caminhão de abóboras vai sacudindo pela estrada e seu balanço faz com que as referidas se acomodem, se aquietem. Vamos tocando a vida. Em breve – no papel de seres humanos ou de abóboras virando carruagens sem se darem conta – sairemos dessa, diferentes.

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