FERNANDO FABBRINI

Em futuro próximo

Não confirmo nada; só desconfio


Publicado em 10 de março de 2021 | 13:07
 
 
 
normal

E um belo dia, nos próximos meses ou sei lá quando, a pandemia acaba. Finalmente surgem vacinas, pílulas, comprimidos, cápsulas, poções – e estamos conversados. Assim como os demais vírus que assolaram a raça humana desde a idade média, o bicho chinês vai se acalmar. Atingida a clássica imunidade estatística, ele perderá sua força, sua transmissibilidade (palavrinha danada!) e, sem deixar saudades, voltará a dormir no colo aconchegante da mamãe-morcego lá no mercado de Wuhan.

O final tão esperado naturalmente causará um alívio formidável. Famílias perderam seus queridos. Amigos se foram. Quem não passou por essa dor maior viveu tempos difíceis de incertezas, desemprego, falências, sobressaltos, temores noturnos, insônias, depressões, angústias diversas. Não foi mole, não.

Porém, creio que rapidinho surgirão descontentes. Uma parcela do público – por exemplo, aqueles folgados que ficaram em casa no sofá, vendo Netflix, recebendo salários, bonificações, diárias, deliverys de cervejas e pizzas – acordará incomodada com a novidade. Acabou a folga, precisam voltar ao batente, que saco! Grande parte da mídia brasileira e da internacional – sem assunto - também vai chiar, espernear, ruminar os efeitos colaterais da página virada.

E será fácil prever as manchetes em caixa-alta de jornais e sites que se esbaldaram durante o terror da pandemia e contribuíram para a manutenção do pânico. Uma das primeiras: “SUS conclui a vacinação de todos os brasileiros”. E em letras maiores: “Militante da ONG Braço Esquerdo vai ao Supremo por ter sido vacinado no bíceps direito”. Outra: “Covid sob controle, mas infectologista ucraniano alerta para surto de diarreia em Kiev”. No fim do ano: “Economia recupera perdas e PIB bate novo recorde”. Ué, vai ter notícia boa? Ah, seus ingênuos! Faltou o subtítulo obrigatório: “Setor de serpentinas e adereços faz greve e ameaça o Carnaval”. Outra: “Leitos de UTI atingem nível mínimo de ocupação, mas ratazana de grande porte foi vista nos arredores do hospital”. Humoristas, cartunistas que conseguiram achar graça da tragédia e dela garantiram seus contracheques vão suar frio – e não será por febre.

Livres dos isolamentos, das máscaras e do álcool em gel, trabalhadores voltarão aos seus postos; crianças e jovens na escola. E o Brasil, que mesmo durante a pandemia bateu recordes de empregos formais e brilhou no agronegócio, se verá livre dessas amarras, dará novos saltos inaugurando obras essenciais de infraestrutura.

Na TV, dirá o âncora para o comentarista de economia:

- O que você acha desse excesso de disponibilidade de água para a agricultura no polígono das secas?

- Realmente, é um fato preocupante e de consequências inimagináveis. A água é um elemento exótico, um invasor autoritário desprovido de identidade cultural com o povo nordestino. Há séculos, pessoas humildes convivem pacificamente na caatinga estorricada em interação harmoniosa com os líderes políticos tradicionais. Agora, longe da gestão paternal de seus mentores e numa perigosa condição de autonomia, certamente irão se transformar em produtores rurais independentes; empresários de sucesso. Desse jeito virá a prosperidade; seus filhos se formarão em agronomia e veterinária causando uma provável sobrecarga nas universidades de todo o país. É mesmo alarmante, vamos ficar atentos.

Âncora permanece em silêncio, finge olhar papéis sobre a mesa, cabeça baixa. Súbito, encara a câmera, ar preocupado.

- Boa noite... – finaliza, com voz tenebrosa.

No cenário, fotos de crianças sujas, magras e esfarrapadas; terra seca, mandacarus, cactos, caveiras de bodes. Ao fundo, música triste de sanfona.

Notícias exclusivas e ilimitadas

O TEMPO reforça o compromisso com o jornalismo profissional e de qualidade.

Nossa redação produz diariamente informação responsável e que você pode confiar. Fique bem informado!