FERNANDO FABBRINI

Estado de guerra

Cenários rotineiros do país entregue ao crime

Por Fernando Fabbrini
Publicado em 11 de janeiro de 2024 | 03:00
 
 
 
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Através do convite de um amigo, aceitei participar de um bate-papo (uma live, cara a cara) com um jovem policial militar. Ele entrou para a corporação movido por idealismo; é daqueles raros cidadãos que acreditam poder contribuir para um mundo melhor. Hoje, sob licença médica, cura-se de um burnout – nome novo para esgotamento físico mental – e aproveitou a chance para desabafar sobre as agruras da profissão. A partir da conversa informal, reproduzo trechos da rotina do rapaz, preservando sua identidade e denominando-o “Nelson”.

Nelson acorda pontualmente às 5h. Dá uma beijoca na Jussara (nome também fictício), sua mulher; vai ao banheiro, toma a chuveirada. Em seguida, assenta-se à mesa para o modesto café com pão, comentando com a patroa as expectativas para o jogo de domingo. Ela, Flamengo. Ele, Botafogo. Volta e meia dá briguinha, provocações, piadinhas que terminam na troca de carinhos e risadas.

Nelson olha o relógio e veste a farda, apressado. Seu filho, mochila nas costas, aguarda a carona de moto do pai para chegar à escola no bairro vizinho. Jussara fica apreensiva vendo o marido saindo para o trabalho. Reza muito, desliga a TV e só escuta música no rádio para não saber o que está acontecendo.

Depois de deixar o menino, Nelson chega ao quartel. Formação da tropa, instruções, distribuição de armamento. Na agenda do dia, incursão numa favela para prender dois caras perigosos. Nelson sente o calafrio costumeiro nas costas, a garganta seca, o pescoço tenso. Mas passam logo, vai se acostumando. As contas do fim do mês assustam também.

Entrar em favela é barra pesada; bandido escondido e disparando contra policiais e contra qualquer um que se mova. Nelson já carregou um colega baleado, sujou as mãos e a farda com o sangue. Velho truque: bandido atira em um, espera socorrerem o ferido para mudar a tecla do disparo automático – pá-pá-pá-pá! – e completar o massacre.

Para muita gente, o trabalho de subir às favelas, enfrentar criminosos disfarçados de gente boa, entrar em becos apavorantes é moleza; rotina, só rotina. Balas perdidas e vítimas inocentes geralmente são creditadas à polícia, jamais aos bandidos. Não costuma ser assim o enfoque da notícia? Os oportunistas não perdem a chance e logo disparam sua costumeira munição ideológica: “Confrontos inadmissíveis em que a polícia deveria ser mais cuidadosa, respeitadora e responsável”. O vídeo mostrou o criminoso dando tiros na cabeça do policial mineiro, e o assassino é tratado na notícia, com escrúpulos e toda elegância, como “o suspeito”. Que ética doentia é essa?

Em Belo Horizonte, Rio, São Paulo e em todo o Brasil há uma guerra sem fim, há décadas, com centenas de mortos civis, militares, trabalhadores, crianças, donas de casa, idosos. Guerra que muitos brasileiros se recusam a encarar; é apenas a já aceita “violência de cidade grande”.

Se por um milagre tal violência acabasse, imagino que muitos jornalistas de sucesso na TV perderiam o ganha-pão. Revoltam-se – de mentira –, mas vivem disso, e vivem bem. Quanto mais escandaloso o fato, melhor; mais audiência e mais faturamento. Enquanto isso, os traficantes, criminosos e assassinos reincidentes continuam roubando e matando quem dá na telha nas “saidinhas” – presentes daquilo que no Brasil é considerado “justiça”, sob inspiração de um governo que parece afagar bandidos e perseguir inocentes.

Nelson contou-me que a licença termina já. Está na dúvida se continua na carreira militar ou se aceita os insistentes convites do sogro, proprietário de uma oficina mecânica no interior do Estado. Melhor: mãos sujas de graxa, em vez do sangue dos colegas.

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