FERNANDO FABBRINI

Jelson versus Mandrake

Redação O Tempo


Publicado em 08 de outubro de 2015 | 03:00
 
 
 
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Jelson com jota era doido e também doido por cinema. Este início esquisito exige uma explicação, chego lá. Jelson frequentava as matinês do colégio dos padres, acompanhando as aventuras de Roy Rogers, Tarzan, “O Santo e Lanceiros de Bengala” enquanto devorava dropes Dulcora com volúpia assustadora. Eram sessões às onze da manhã, com entrada franca para os mocinhos participantes dos eventos anteriores obrigatórios – o catecismo e a missa. Na sorrateira havia sempre os bandidos, os malfeitores que não iam à missa nem comungavam; disfarçadamente entravam pela porta lateral do cinema, aproveitando-se da miopia do padre Ernesto.

Jelson praticamente não dormia de sábado para domingo imaginando o que teria sucedido a Dick Tracy, despencando no abismo com seu Mercury 1940 cruelmente fechado pelo caminhão dos malfeitores de Big Boy naquela estradinha espremida no penhasco. Estaria ainda vivo na próxima semana para continuar o seriado, meu Deus? E se padre Ernesto, balançando a cabeça, comunicasse a tragédia à plateia com sua inconfundível voz fanhosa?

— Meninos, silêncio! Lamento dizer que Dick Tracy, paladino da justiça, morreu no último episódio. Rezemos agora por ele, todos de joelhos...!

Assim, por via das dúvidas, na missa, entre as orações regulamentares – pelos pais, professores, padres adoentados, pelo arcebispo metropolitano e pelo papa, Jelson também rezava, em segredo, por Dick Tracy, pelo Zorro e pelo Tonto; pelo Tarzan, Durango Kid – menos para O Santo, que lhe parecia desnecessário.

Eu disse lá no início “Jelson era doido por cinema”? Sim, e devo acrescentar que Jelson também era doido só. Louco de pedra, um louco adorável, genial. Conversava com as rolinhas do pátio, com os abacates que caíam e com o esqueleto da sala de biologia. Amava platônica e desesperadamente Monica Ruschel-Ritter, belíssima filha do cônsul alemão. A moça era linda ao exagero; loura platinada, tinha covinhas, olhares de falsa súplica e longas unhas pintadas de rosa. Sua cruzada de pernas displicente e os decotes reveladores demais para Belo Horizonte dos anos 60 respondiam pelo aumento das filas de jovens ginasianos nos confessionários de sábado à tarde.

Antes do final da quarta série, Jelson piorou muito. Aumentaram os diálogos com seres inanimados, preocupações absurdas com heróis de seriado, fofocas inverossímeis de casais de Hollywood e delírios envolvendo sua estrela favorita, Monica Ruschel-Ritter. A moça passou a evitá-lo e sumia de vista com frequência. Jelson botou na cabeça que ela se encontrava às escondidas com Mandrake, levada nas costas por Lothar – e isso não poderia continuar. Numa tentativa de, por fim, declarar-se à amada, embrulhou-se em papel celofane e postou-se, com a ajuda de um primo cúmplice, à porta da residência consular, no dia do aniversário de 18 anos da moça. “Mandrake ama a Princesa Narda, te engana. Sou o teu presente!” – escreveu em vermelho sobre um cartão com pombinhos, colado com fita durex no peito. Infelizmente – ou felizmente? – Monica Ruschel-Ritter tinha viajado com os pais para o Rio. E ali ficou Jelson até tarde, encostado no muro áspero, o laço de fita se desfazendo, o papel celofane azul chiando “schlep!” a cada mudança de posição, exausto que estava. O vigia do consulado, alertado pelos pais da moça quanto à fixação do rapaz, por pouco não chamou a rapa, sendo Jelson salvo por um tio médico que o recolheu no seu Simca Chambord.

Os sintomas se agravaram mais e não houve jeito: internação. Jelson foi tratado como de praxe naquele tempo: choques, banhos gelados, medicação pesada e até camisa de força. Pouco a pouco, os médicos, os remédios e a estupidez humana conseguiram apagar os fotogramas originais e as cenas eletrizantes de sua alma. Ao cabo de um ano voltou às aulas, transformado em uma fita de celuloide em branco, quadrados vazios, transparentes.

Mas não durou muito. Jelson resistira à lavagem e lá no fundo ainda reservara suspenses e repentes para chocar o mundo normal. Foi durante a prova final de português; prova oral, não se usa mais. Sendo questionado sobre a função sintática de determinado vocábulo, Jelson com jota encarou o professor, fez uma longa pausa e desferiu em voz alta:

— O que fazemos aqui, professor?

A sala inteira ouviu e gargalhou.

— Ora, Jelson; estamos no colégio, durante uma prova.

— Desculpe, o senhor não entendeu. Perguntei o que fazemos aqui, nesse mundo.

Quem me dera saber, Jelson. Quem me dera.

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