FERNANDO FABBRINI

Malditos estrangeiros

Redação O Tempo


Publicado em 01 de outubro de 2015 | 03:25
 
 
 
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Mandaram o recado por meio de portadores sucessivos, só para esconder de onde a ameaça tinha partido originalmente. Podia ser apenas mais um boato. Porém, o fato é que alertaram meu bisavô que iriam invadir as casas dos italianos e quebrar tudo. Ele, um homem pacífico e elegante, balançando as mãos postas à altura do peito, perguntou ao vizinho:

— Ma perché?

O tal vizinho, que se dizia comunista trotskista, aproveitou-se:

— Ah, porque estamos numa luta de classes, numa guerra. O senhor é italiano; italiano é fascista. Logo, o senhor é inimigo do povo.

Meu bisavô soltou um palavrão e foi se instruir sobre os riscos de ser italiano e fascista. Da nacionalidade não tinha dúvidas: chegara a Santos no vapor Espagne com outras famílias oriundas da Toscana quando a fome bateu à sua porta. Mas de “fascista” só tinha ouvido falar. Remexeu jornais antigos, folheou livros e trocou ideias com o vigário da paróquia de Santa Efigênia. Daí, refletiu: não, jamais; não era fascista e, ainda por cima, achava Mussolini um falastrão. Detestava política e políticos; amava os vinhos, a ópera, a música, Dante Alighieri e as morenas brasileiras.

Correu os olhos pela propriedade e fez seu inventário pessoal. Quais seriam as perdas e os danos no caso de uma invasão? A casa era modesta, porém digna e arrumada. De conforto, o básico: o fogão a lenha, um banheiro decente, um quarto amplo com a cama de casal. Havia ainda a sala com tábuas enceradas semanalmente; a cristaleira com porta-retratos, pratos, bandejas e lembranças empoeiradas. E, no fundo, o quintal, sem cercas, confundindo-se com a paisagem bucólica da Serra. Foi de lá que ouviu o berro familiar da Carmela:

—Bééééé!

Aí seu coração apertou. Carmela era uma das três cabras que habitavam seus domínios e o abasteciam de leite para o queijo de sabor forte – um dos poucos luxos que ele mantinha. As outras cabras eram Bela e Fiorela, três nomes inspirados no som “é” prolongado, imitando o berro peculiar dos bichos. Bastava que meu bisavô gritasse “Béééla, Carméééla, Fioréééla!” para que as cabras viessem correndo, balançando os sinos dos pescoços. Por perto também andava Benedito, um robusto bode nacional e senhor exclusivo do harém, desfrutando da miscigenação das raças sem preconceitos, aceita e incentivada pela família. Meu bisavô acariciou o pelo macio da cabrita e decidiu-se: ali ninguém entraria nem tocaria nos seus animais. Por Bela, Fiorela e Carmela faria sua guerra particular e resistiria até o último queijo.

O medo se insinuava nas rodas de conversa pelas esquinas de Belo Horizonte. A padaria dos italianos já tinha sofrido quebradeira – o letreiro luminoso e dois espelhos da vitrine estilhaçados na calada da noite por um grupo encapuzado. Outros comércios do centro – a casa dos guarda-chuvas, a confeitaria, a chapelaria e a loja de ferragens – também registraram ataques.

“Malditos estrangeiros!” – deixaram escrito com tinta preta numa das paredes.

Segundo os cochichos, a invasão e o saque das casas das famílias italianas e alemãs seria no 7 de Setembro, data simbólica. Nesse dia, meu bisavô levantou-se cedo, ordenhou suas cabras e, ao invés de soltá-las como de costume, fechou-as no curral. Em seguida, tomou um banho de banheira, aparou a barba grisalha, perfumou-se com água-de-colônia. Daí, vestiu seu terno branco de linho e caprichou no laço da gravata de seda. Foi à cozinha e arrastou uma das cadeiras pesadas até o portão de ferro da rua. Assentou-se com a bengala no colo, escoltado por Benedito, única companhia que se permitiu, já que a situação era pra machos.

— Daqui não passam, Benedetto – disse ao bode. E plantou-se na calçada, impassível, até a noite.

O nacionalismo exacerbado e beligerante felizmente ficou restrito ao desfile militar, e, afinal,
ninguém perturbou meu bisavô e suas queridas cabras. De resto, não demorou até que a guerra acabasse na Europa; todos comemoraram com foguetes, copos de cerveja e abraços patrióticos.
Alguns anos depois, corri de pés descalços pelas mesmas trilhas de Bela, Carmela e Fiorela, apanhando goiabas e nadando nos córregos que desciam da Serra. Meus companheiros de bagunças e aventuras tinham sobrenomes esquisitos: Purri, Mattar, Wilke, Scotti, Shimba, Jeolás, Grisi, Abras, Brant, Mallard, Polizzi. Era a nova geração dos malditos estrangeiros que subia o morro para jogar futebol com os moleques das favelas do Pendura Saia e do Pau Comeu. Sem medo e de coração aberto, tínhamos nossa própria ideologia e não nos importavam território, raça, cor ou religião. Ninguém era nada. Éramos só amigos. 

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