Na semana passada, comentando sobre os professores, dei aqui um palpite: “confunde-se ‘autoridade’ com ‘autoritarismo’. São duas coisas completamente diferentes, mas vivemos um tempo de lambanças e falácias propositais”. Recebi um número de e-mails superior à média referentes à frase. Daí, achei que deveria continuar no assunto.
Vamos nos divertir um pouco. A cena se passa há muitos anos. Imaginemos o poeta diante de sua velha escrivaninha, coçando a careca e tendo à mão uma caneta Parker 61. Ele rabiscou as primeiras linhas de um novo poema. Súbito, levanta-se, corre até o velho telefone preto, discando o número de um amigo. O sujeito atende:
– Oi Manuel! Tudo bem? Olha, estou com uma dúvida...
– Pois não, Carlos, às ordens...
– Bem... Estava andando no meio do caminho e tinha uma pedra. Então, pensei... E se fosse uma garrafa vazia? Um sapato velho? Ou um galho seco... O que acha?
Manuel, relutante, deu sua opinião. Carlos anotou-a num papelzinho. Depois ligou para João, Mário, Rubem, Murilo, Vinicius, perguntando a mesma coisa. Cada um defendia sua preferência em torno do objeto no meio do caminho. No fim da tarde, atormentado, Carlos jogou as anotações no lixo e deixou pedra mesmo, como pensara desde o início.
Outra cena: o centro cirúrgico de um grande hospital. Sedado, o paciente vai receber um transplante de coração. O médico, experiente e seguro, toma o bisturi, ergue-o. Porém, interrompe o gesto no ar:
– Peraí... Vamos decidir em conjunto, pessoal.
O anestesista, as enfermeiras e os assistentes se entreolham. O cirurgião prossegue:
– Vejamos... Vocês preferem que o corte no peito seja na vertical ou na horizontal? E as costelas? Serro o esterno ao meio ou só do lado esquerdo?
O comandante de um navio, tendo à frente um gigantesco iceberg, reúne a tripulação no convés:
– Marujos, devemos virar o leme para bombordo ou estibordo? Reduzimos a velocidade ou aceleramos? Decidam e me falem, tá? Tô lá na cabine, cochilando.
Pois é, inventei essas brincadeiras para exemplificar o que acho sobre a diferença sutil entre autoridade e autoritarismo. O povo – principalmente os jovens – anda confundindo os conceitos. Para a garotada que nem arruma a própria cama, qualquer obrigação banal vira “autoritarismo”. Na mesma onda, muitos adultos, com medo de passarem por “autoritários”, preferem coletivizar todas as decisões, fazendo-se de “legais”. Qualquer bobagem e lá vêm assembleias, polêmicas, discussões infindáveis. Todos se agarram a suas minúcias, fincam o pé, criam casos, não resolvem nada, e fica tudo adiado para o próximo debate.
Millôr Fernandes dizia que toda unanimidade é burra. Uma piada antiga entre os criativos da área de publicidade alerta que o camelo era pra ser um cavalo – mas, por azar, caiu nas mãos de um grupo de trabalho. Deus estava cansado; deixou o esboço sobre a mesa, e logo os assessores tomaram a frente:
– Pessoal, o que vocês acham? Parece um bicho interessante, Deus batizou-o “cavalo”. Vamos desenhá-lo em conjunto?
– Ponha uma corcova! – disse um.
– Não, melhor duas! – exigiu outro.
– E a cor do pelo do bicho? Amarelo?
– Não, marrom! – gritou, em coro, outra turma.
– Ah, marrom, não! – ouviu-se ao fundo. O bate-boca inflamado arrastou-se pelos corredores do Paraíso. Depois, com calma, Deus refez o cavalo como bem entendia.
Enfim: decisões em grupo, comitês, colegiados, coletivos e assemelhados funcionam em certos casos, com certeza. Mas não exageremos. Porque buscar consensos também pode esconder uma tremenda covardia. De fato, o que é decidido “em conjunto” não tem pai nem mãe. Se der errado, ninguém assumirá a responsabilidade; todos lavarão as mãos, aliviados. Tiraram os seus da reta.
O pessoal do prédio vizinho está há um ano escolhendo a cor para pintar a grade da frente. Deu até briga na reunião de condomínio. Penso que deveriam aceitar a sugestão da arquiteta encarregada da reforma – uma autoridade no assunto. E você, caro leitor, o que acha? Nem me fale.