FERNANDO FABBRINI

Nem cabide, nem coleira

Artimanhas entre a arte e o poder


Publicado em 12 de maio de 2022 | 03:00
 
 
 
normal

Durante o curtíssimo governo Jânio Quadros, um então famoso coral mineiro foi convidado a se apresentar em Paris. Tratava-se de um encontro internacional de corais; evento importante. Honrada, mas também apreensiva, a diretoria do grupo fez as contas: coral é muita gente; não haveria dinheiro para tantas passagens e estadias. Diante disso, mexeram os pauzinhos e conseguiram agendar às pressas uma audiência com o presidente em Brasília. Contam que Jânio os ouviu em silêncio, cofiando o bigodão. Quando lhe entregaram o orçamento da viagem, correu os olhos e disparou, naquele célebre sotaque mato-grossense:

- Senhores, sinto muito, não será possível. Primeiro darei dinheiro aos que choram; depois, aos que cantam.

O caso, que faz parte da lista excêntrica do Jânio, é um exemplo da complicada relação entre o poder e a arte. Quanto mais distante ficarem um do outro, melhor. Sobretudo em países como o nosso, onde governantes usaram e abusaram de dinheiro público para encher praças com cantores, bandas, pão e circo. Semana passada o PT e Daniela Mercury se meteram numa trapalhada com verba oficial. Fizeram showmício – proibido! – e campanha eleitoral antecipada. Mas não deu em nada: o ex-presidiário, sob o olhar complacente, compreensivo e até carinhoso da justiça, pode aprontar essas travessuras, danadinho que é.

Venho de uma família acostumada à vida dura das profissões artísticas. Minha bisavó cantava óperas na Itália liderando uma trupe mambembe. Mamãe e irmãos, quando jovens, mantinham uma modesta companhia de teatro no interior de Minas. Meu pai, mecânico e luthier autodidata, fazia bicos tocando bandolim com seus amigos. Meu tio construiu uma câmera com as próprias mãos e tornou-se cineasta amador. Tenho primos pintores; uma sobrinha diretora de teatro renomada; uma irmã artesã de belos bordados; uma filha cantora e outra fotógrafa. Enfim: tivemos o privilégio de sermos criados no meio de livros, músicas, filmes, tintas e pincéis.

Graças a essas boas influências aprendi que a arte deve ser, em primeiro lugar, uma expressão intransigível e independente. E, por isso, quase sempre rebelde, orgulhosa, íntegra. Quando vira arte patrocinada, murcha. Perde sua essência, domestica-se em jaulas ideológicas, submete sua alma e criatividade às conveniências e ao bolso. O poder é bastante hábil para cooptar artistas, pagá-los e usá-los como enfeites temporários.

Contrário ao apoio com dinheiro público, defendo o show-business – dinheiro privado financiando artistas e compartilhando os resultados do investimento. Arte e mercado, quando levados a sério, são excelentes parceiros. Na contramão, as leis de incentivo apoiaram preferencialmente aqueles que batiam palmas para os governantes. E até o leão da Metro sabia que tal sistema propiciava falcatruas e enriquecia agentes; facilitava calotes gigantescos, escapadas fiscais e contrapartidas escabrosas. Em Minas tivemos um vergonhoso caso envolvendo funcionários públicos que também intermediavam verbas da Lei Rouanet como pessoas jurídicas. Em nome da “cultura” se esbaldaram, encheram as burras.

A arte não deve ser a coleira do artista nem tampouco o cabide onde ele se pendura em busca de vida fácil. É um trabalho digno e de valor, como qualquer outro, exigindo talento, sensibilidade, disciplina, dedicação. Quando desce a cortina, que venham os aplausos ou as vaias. É o preço, às vezes doce, às vezes amargo, de quem escolhe esse caminho – nisso, idêntico ao de qualquer outra profissão.  

 

Notícias exclusivas e ilimitadas

O TEMPO reforça o compromisso com o jornalismo profissional e de qualidade.

Nossa redação produz diariamente informação responsável e que você pode confiar. Fique bem informado!