FERNANDO FABBRINI

Novas trevas

Escuridão iluminada por fogueiras


Publicado em 16 de setembro de 2021 | 03:00
 
 
 
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Na ficção, o alerta foi dado por Ray Bradbury no antológico “Fahrenheit 451”, romance que virou filme. Os “bombeiros” de uma cidade imaginária tinham como missão descobrir livros ocultos e tacar fogo neles. Na vida real, as mesmas fogueiras marcaram as tiranias de Adolf Hitler e Joseph Stalin, adeptos do hábito. 

Esses dois têm nomes e permanecem na memória. Agora, uma nova onda anônima de furor autoritário se esconde na fumaça politicamente correta e ganha adeptos, sobretudo entre jovens. Além de estátuas e monumentos, andam queimando também livros, embalados no ridículo frenesi adolescente de anular o passado.  

Se ficasse só nisso apenas engrossaria o folclore de nossa atualidade. Porém, acho que tem coisa mais séria nos arroubos piromaníacos. Falo da incapacidade galopante de parte dessa geração de conviver com a adversidade, o contraditório, o oposto, aquilo que não lhe agrada. Mimados demais, paparicados pelos pais e professores, deliram na ilusão de viver numa civilização cor-de-rosa onde todos são legais, pensam iguais, aceitam tudo e qualquer coisa sem a menor crítica ou reflexão madura.

Há ainda muita frescura por trás desse ardor. Circula nas redes um vídeo simbólico: um adolescente vocifera contra a plataforma de celulares exigindo que retirem “emogis” de bifes, filés e bistecas do aplicativo “porque ele é vegetariano e isso o ofende demais”. Termina o depoimento aos prantos; tadinho.      

Semana passada a Rádio Canadá descreveu uma "cerimônia de purificação da chama" conduzida por um conselho de escolas de Ontário. Cerca de 5.000 livros foram removidos das bibliotecas e arderam sob palmas e brados de garotos e seus mestres. Que obras nocivas eram essas? Entre outras, exemplares coloridos de Asterix, Tintin, Pocahontas; personagens acusados de “racismo” contra os habitantes primitivos do país, raças e povos.

Eu adorava Asterix quando ele dizia “esses romanos são uns neuróticos” e isso jamais ofendeu minhas origens italianas. Tintin, cuja coleção guardo com carinho, viveu aventuras impagáveis com o capitão Haddock, marujo raivoso que xingava piratas e ladrões com palavrões engraçadíssimos. Ah, tá, entendi: vai ver que piratas, criminosos e outros bandidos também se sentiram vítimas de preconceitos e resolveram alimentar as chamas.

O primeiro-ministro Trudeau, cuja eleição foi elogiada pelo Estado Islâmico, fingiu condenar as fogueiras soltando frases mornas, postura alarmante num país construído sobre as bases da diversidade, da civilidade e do convívio democrático. O problema de queimar livros não é que pessoas intolerantes procurem válvulas de escape para raivas particulares. São, de fato, claros ataques de minorias indóceis às sagradas liberdades de pensamento, associação e crença.  

A escuridão medieval avança. O talibã destruiu todos os instrumentos de um estúdio de gravação em Kabul sob a justificativa de que “música é coisa diabólica e contra a religião”. Inquisidores posam de progressistas. No Brasil, filhotes do autoritarismo discreto pregam censura às redes sociais, via democrática de expressão e diálogo do cidadão cansado das mídias de rabo preso.

A violência incendiária esconde, de fato, o medo da pluralidade e da realidade - realidade difícil, às vezes incômoda, dolorosa, triste ou irritante, área onde vive o “outro”. Tentar abafá-la é desprezar lições inspiradoras dos propósitos de estarmos, tão diferentes, dividindo o mesmo tempo e o mesmo espaço neste planeta. E só por alguns anos, antes de virarmos cinzas. 

Na Alemanha, antes da Segunda Guerra, e na Rússia após o conflito, também queimaram livros, ideias, símbolos, monumentos, raças, crenças e pessoas. A gente sabe no que deu. 

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