FERNANDO FABBRINI

Paquito y la pelota

Sempre achei o vestibular uma tremenda crueldade


Publicado em 25 de outubro de 2018 | 02:00
 
 
 
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Sempre achei o vestibular uma tremenda crueldade. Em minha época, não me dava conta da gravidade do evento; fiz e passei raspando – para abandonar o curso na metade, botar uma mochila nas costas e correr mundo. Valeu a pena, sem dúvida; nunca me arrependi.

Mas até hoje não me conformo com o sistema. Pega-se um jovem na faixa dos 18 anos; coloca-se o sujeito diante de dezenas de opções e obriga-se o cara a optar por sua futura profissão e destino, já tão cedo. Existem aqueles que desde criança exibem suas vocações e com elas se realizam. Porém, a cada dia escuto mais garotos vacilando entre as carreiras de medicina e turismo, espantando-me com a distância que separa uma sala de cirurgia de um cruzeiro nos mares do Caribe.

Escolher uma profissão é um encargo que envolve sobrevivência e prazer simultâneos, mas poucos têm a sorte de combinar os dois lados da moeda. Antigamente, as opções eram poucas: engenharia, medicina, economia, administração ou direito.

Hoje a coisa mudou, há dezenas de caminhos à frente do vestibulando. Por um lado é bom: a variedade permite que o sujeito afine suas preferências, mas não deixa de ser um complicador. Uma coisa é você escolher entre marmelada ou goiabada; a outra é entrar numa loja de doces italianos e só poder comer um.

O tema “vocação” me faz lembrar imediatamente a história de Paquito, ambientada na Espanha dos anos 70. Lá eu frequentava o centenário Café Gijón, no Paseo de Recoletos, ponto de encontro de pintores, músicos, escritores, cineastas e malucos diversos. A melhor definição do local foi concebida por um de seus mais assíduos visitantes, José Bárcena, descrevendo o café como o “habitat de uma estranha constelação de consagrados e de cultivadores tenazes do fracasso”.

Pois bem. Sempre que o assunto “vocação” ou “profissão” entrava nas animadas rodas do Café Gijón, alguém encerrava a discussão com uma frase enigmática:

– Bueno, hay Paquito... – e todos gargalhavam.

Um dia, curioso, pedi esclarecimentos sobre a história, e me contaram. Francisco – ou Paco, Paquito – um dos habitués da casa, tinha sido um jogador de futebol medíocre, eterno reserva de um time. Numa partida dramática, com a equipe desfalcada por contusões e expulsões, foi escalado como última alternativa pelo descrente técnico. Entretanto, algo aconteceu. Contrariando as piores expectativas, Paquito teve suas pernas tomadas por algum espírito futebolístico endiabrado e brilhou, marcando dois gols e virando o placar. A menos de um minuto para o apito final, na cobrança de uma falta pelo time adversário, Paquito, na barreira, levou uma bolada violenta na cabeça. Caiu desmaiado, era sério. Chamaram a ambulância, preocupados. O petardo o deixara fora de si por bastante tempo. Temia-se pela saúde do bravo artilheiro. Quando acordou no hospital, olhou em volta, alheio a tudo. Com voz fraca, pediu papel e lápis. E disparou a escrever, enchendo páginas e mais páginas de um bloco de receitas que lhe deram.

Desde aquele dia Paquito tornou-se escritor. Versos, poemas, sonetos, prosas, crônicas do cotidiano de Madri. Escrevia febrilmente, assentado a sua mesa favorita no Café Gijón. Um homem rude, que mal sabia rascunhar uma carta, realizava-se assim, sem chuteiras. Sabedor da história, vi-o algumas vezes no café, mirando-o de esguelha. Compenetrado, Paquito olhava para o teto, para as pessoas em volta e retornava a seus escritos, frenético.

Em tempo: contaram-me também que seus textos eram horríveis, sem pé nem cabeça, desprovidos de qualquer poesia ou do mais banal e rasteiro valor literário. Porém, viveu feliz assim até o fim e nunca mais ligou para o futebol. Como são estranhos os destinos de uma bola chutada aos 44 minutos do segundo tempo.

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