FERNANDO FABBRINI

Perdão pelo arrepio

Já saiu o roteiro de mais uma história aterrorizante. Com uma incômoda diferença: essa não é ficção


Publicado em 30 de janeiro de 2020 | 03:00
 
 
 
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Depois de “Contágio”, “Epidemia”, “Vírus”, “Quarentena”, “Contaminação” e tantos outros filmes no gênero “doença-misteriosa-cuja-cura- a-mocinha-médica-e-seu-namorado-vítima-descobrem-e-salvam-a-humanidade”, já saiu o roteiro de mais uma história aterrorizante. Com uma incômoda diferença: essa não é ficção.

As sequências são muito similares. Os cientistas as conhecem bem, e os noticiários se encarregaram do resto. A ameaça sempre tem origem numa floresta distante; num matadouro ou numa pocilga asquerosa de um país miserável; em mercados fétidos onde se acumulam galinhas, patos e outros bichos condenados à morte; nas bancas de peixes e moluscos vindos de águas suspeitas.

Aí, basta um descuido, um gesto banal de inocentes rotinas. Um aperto de mão, um espirro, o mal-estar, a febre. Esperto, o vírus fez a mutação, enganou o sistema imunológico do outro organismo e instalou-se nele. Agora, de carona, vai multiplicar-se à vontade – na casa do doente, no ônibus, no bairro, na cidade, no planeta inteiro.

Foi assim com a gripe espanhola de 1918. Mal saído da Primeira Guerra, que matara algo em torno de 20 milhões de militares e civis, o mundo enfrentou o ataque de um inimigo diabólico, velho conhecido dos médicos – o famigerado influenza H1N1. Desta vez, o vírus ressurgia fortalecido, com altíssimo poder de letalidade. Sem vacinas, desorientada, a medicina de então se virava como podia.

Espalhando-se a partir de um campo militar no Kansas, nos EUA, a gripe espanhola (que de espanhola não tinha nada) levou embora perto de 100 milhões de pessoas – número não confiável e certamente maior, já que não foram computadas naquele tempo as mortes da China e da Índia, países muito populosos igualmente atingidos. O Brasil não escapou: a gripe chegou aqui de navio, da África, trazida por uma missão da Marinha ao Senegal. E matou milhares, incluindo antepassados de nossa família, como minha avó contava.

Epidemias trazem inseguranças, boatos e teorias fantasiosas. As nações vencedoras da Primeira Guerra suspeitavam ser a gripe espanhola uma funesta arma biológica, vingança dos derrotados. Já nas conversas reservadas e nos sermões das igrejas, falava-se de castigo divino – pela insanidade da guerra, pelos pecados, pela permissividade da época. Os místicos apontavam para sinais do Apocalipse, como a passagem do Halley e de dois cometas menores que riscaram os céus naquele período.

No caso do Corona, o maior temor dos infectologistas parece ter se materializado. A transmissão de pessoa para pessoa dá proporções infinitas ao contágio. Sabe-se que o prefeito de Wuhan fez besteira, demorou a informar o surto da doença. O governo autoritário da China também não ficou atrás nas burrices. Sitiar cidades com milhões de habitantes só funciona nas aparências. O isolamento e a presumida proteção serão desfeitos quando da necessidade óbvia de abastecimento e de comunicação com os moradores de lá.

Infelizmente, o novo influenza, modelo Corona – se ainda não chegou – em breve chegará aqui também, de avião ou navio. Na qualidade de ser humano comum, portanto vulnerável, espero que a clássica curva estatística das epidemias despenque depressa, indicando o declínio da doença, ou que descubram logo uma vacina. Até lá, tomaremos medidas básicas – fazer a higiene ainda mais caprichada, usar máscaras, evitar aglomerações.

Nesta manhã, lendo notícias sobre os ensaios de bloquinhos de Carnaval, senti um estranho arrepio. Não era febre: apenas sintoma nascido da previsão de multidões de sambistas e turistas pelas ruas do Brasil, daqui a um mês, trocando suores, salivas, beijos e abraços em calorosa animação carnavalesca.

Longe de qualquer alarmismo ou má intenção, peço perdão aos leitores por imaginar esse possível cenário inquietante. Mas pergunto: alguém aí também sentiu um arrepio?

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