FERNANDO FABBRINI

Torquemadas de tênis

Frescuras e censuras


Publicado em 17 de março de 2021 | 12:25
 
 
 
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Já matei bandidos, sem maiores consequências. Muitos confrontos aconteceram em ruas desertas do Velho Oeste, ao pôr-do-sol. Fui mais rápido: saquei meu revólver Estrela de espoletas antes deles. Com um rifle Winchester de plástico também liquidei malfeitores mascarados que tentaram emboscar minha diligência num deserto do Arizona.

Índios, então...! Nossa, até perdi a conta. Apaches, cheyennes e siouxs provaram a rapidez do meu gatilho. Muitas vezes trocava o chapéu e o cinturão por cocares e, investido do espírito de Nuvem Cinzenta, botava pra correr caras-pálidas que tentavam roubar meus búfalos.

Minha espada marca Trol, ensanguentada, guarda a memória de piratas que trucidei aí pelos sete mares. Com a meninada da rua dependurava-me em cordas de bacalhau e abordava o galeão galinheiro repleto de corsários – frangos que ali cochilavam.

Pois é. Feito tantas crianças de minha geração, por conta dessas brincadeiras e dos filmes que vi, transformei-me num cara agressivo, violento, mau exemplo para os jovens; perigoso e altamente nocivo ao convívio social. Agora, adulto, influenciado por tais práticas sanguinolentas, possuo até duas armas em casa: uma faca de cozinha para picar cebolas e batatas e meu velho “katana” samurai enfeitando a parede, lembrança da prática esportiva do I-ai-do. Este, acho que nem batata corta.

Tolices da moda politicamente correta vão invadindo o cinema, as histórias em quadrinhos, as séries da TV. A cada dia inventam regras que manietam os criadores, mediocrizam os roteiros e imbecilizam a audiência. Bichos horríveis e seres monstruosos em filmes infantis agora jamais podem ser “mortos” pelo herói da história. São, no máximo, escorraçados e escapam com o rabo entre as pernas. Na mesma linha, o príncipe-mocinho-galã nunca “matará” o vilão cruel. O fim do maldoso acontecerá por obra do destino: a torre do castelo desaba sobre ele; coisa assim.

Susceptibilidade extremada, racismos imaginários, questões de gênero, feminismo caricato, arrepios histéricos e outras frescuras do ativismo mi-mi-mi engrossam a lista dos novos censores do século 21. Imagine: babacas conseguiram impingir a pecha de “preconceituoso” ao clássico “Dumbo” pelo comportamento debochado dos corvos negros do filme. Lembram-se de “Aristogatos”? Ai! Ui! Mon Dieu! Viraram “racistas”, inimigos dos povos orientais. Motivo: um dos gatos mais engraçados do filme é siamês. Algum histérico deu chilique e apontou-lhe o dedo acusador, talvez para agradar seu amorzinho coreano. Os maneirismos e sotaques do simpático ratinho Speedy González (no Brasil, “Ligeirinho”) tornou-se “ofensivo” contra latinos. Aos olhos injetados dos inquisidores que usam sapatênis, Peter Pan cometeu crime ao “zombar de indígenas norte-americanos”. Numa cena, fumou cachimbo da paz e tossiu. Só por isso.

A salada dessas asneiras está consolidada no próximo lançamento da Disney, “Raya”. Diz a divulgação: “ela é uma garota empoderada (ai, ai, ai!); uma guerreira com características que geralmente são dadas a personagens masculinos”. Conferi o trailer. Frase da heroína repetida à exaustão: “jamais confie em alguém”. Conselho agregador, edificante e solidário para sua filhota nesse momento da história da humanidade, não?

A conclusão é óbvia: a maldade, a discriminação e a intolerância costumam residir nas cabeças dos que as dizem condenar. Lembrei-me de um episódio da publicidade. A equipe da agência apresentava campanha em homenagem aos caminhoneiros no Dia dos Pais. No filme e nos anúncios via-se um motorista bonachão diante de uma carreta com a logomarca famosa, dando um caminhãozinho de brinquedo ao filho. Imagens cheias de ternura, enriquecidas por belos textos. Súbito, um executivo da montadora pediu a palavra, ar preocupado:

- Peraí, pessoal! Esse caminhoneiro é tarado, pedófilo! Reparem: ele está seduzindo o menino com um presentinho!

“Acuse os outros daquilo que você faz” – dizia o velhaco Lênin.

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