FERNANDO FABBRINI

Vale mais viver

Uma obra-prima do cinema alemão


Publicado em 26 de agosto de 2021 | 03:00
 
 
 
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O tanto que gosto de cinema – digo cinema mesmo, telona – é proporcional à preguiça de assentar-me no sofá diante da TV para ver filmes. Porém, com as restrições da pandemia, era isso ou nada. Daí, adaptei-me à plateia doméstica compulsória, mas limitando minha audiência a uma única sessão diária – jamais uma “maratona”, variante do pecado da gula que virou moda. As pessoas se empanturram de filmes, ansiosas, e ao final da noite não saborearam nenhum.

Outra preguiça minha vem da baixa qualidade do que tem sido despejado via streaming. Sobram filmes velhos, antigos sucessos que ninguém aguenta mais rever, além do pacote repulsivo de séries sobre tráfico, traficantes famosos, contrabando de drogas, milionários da droga, assassinos da droga, chefões, chefinhos e chefonas. Tem droga demais por aí.

No meio de tanta porcaria às vezes encontramos algo especial. Agora, foi uma produção alemã de 2018, no Prime Vídeo, cujo título em português virou “Nunca deixe de Lembrar”. Acompanhando outras asneiras nas traduções dos títulos, erraram de novo. Mais adequado seria “Nunca desvie o Olhar” (“Never look Away”, como saiu em inglês) frase citada pelos atores ao longo das 3 horas que dura o filme. Sim, prepare a pipoca, são 3 horas; 188 minutos de uma história extasiante com fotografia maravilhosa e desempenho primoroso do elenco.

Filmes devem ser assistidos, comentá-los é meio inútil. Mas segue um resumo: passado entre 1936 e 1966, ele narra a trajetória de Kurt Barnert, jovem idealista e pintor talentoso. Quando criança, ele sofreu os terrores do nazismo e os bombardeios aliados que arrasaram Dresden, sua cidade. Já rapaz, penou sob o jugo comunista da Alemanha Oriental. Submetido ao massacre diário da propaganda e da vigilância opressora, o artista dentro dele felizmente resistiu às lavagens cerebrais de ambos os regimes autoritários. A propósito; moçada, vejam o filme. E reparem como a massificação da opinião pública, a insistência das mentiras ideológicas e a violência contra quem delas discorda são métodos tradicionais das tiranias; só muda a maquiagem.

Legal também é a reconstituição criativa do ambiente das décadas passadas, como a manchete de jornal falando sobre um assustador muro erigido em Berlim. Ou quando um garoto aparece usando uma calça diferente chamada “jeans”; a fartura de aparelhos de TV à venda nas lojas; a liberdade de ir e vir – novidades que atraem a atenção de Kurt e de sua namorada Ellie. Se você viveu esses anos, melhor: vai curtir lembranças das loucuras daquele período; da explosão do rock-and-roll, da vanguarda da pop-art – momentos degustados intensamente pela juventude enquanto o mundo temia virar poeira com os mísseis de Nikita Kruschev.

De posse desse rico e farto conteúdo dramático, o diretor Florian von Donnersmarck (Oscar de Melhor Filme Estrangeiro de 2006 - “A Vida dos Outros”) poderia fazer de sua obra um dramalhão comercial ao gosto do grande público ou mais um panfleto politizado na linha da insuportável “arte engajada”. Mas, não: manteve-se coerente com o que parece ser sua crença do papel da arte e da importância dela para a humanidade.

Kurt Barnert, o sofrido protagonista do filme, só encontra a inspiração, a paz e até o sucesso quando pinta quadros afinados com sua própria história, sua jornada dolorosa e seus sentimentos legítimos. Com desfecho surpreendente, “Nunca deixe de Lembrar” passa o recado daquilo que nunca devemos nos esquecer: mesmo na banalidade do nosso cotidiano - às vezes sem-graça, sem brilhos, aventuras, romances ou efeitos especiais - a vida real continua sendo muito mais importante do que a arte.

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