CAROL RACHE

A felicidade não é um bolo

'Copiar receitas de contentamento de alguém radiante é desconsiderar a especificidade do nosso paladar'

Por Carol Rache
Publicado em 25 de setembro de 2020 | 03:00
 
 
 
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Uma boa fatia de bolo pode trazer muita felicidade, isso é fato. Mas a felicidade não é um bolo. 
 
Quando você encomenda um bolo, a primeira coisa que te perguntam é o sabor, e a segunda é o número de fatias. É uma conta que precisa ser pensada com cautela, porque é aceitável que sobre uma fatia para saborearmos no dia seguinte, mas não é razoável deixar um convidado sem a sua dose de felicidade. 
 
Bolo é um recurso limitado, percebe? Se eu como uma fatia maior, alguém necessariamente vai sentir falta de algumas colheradas. 
 
A felicidade, não. Se eu estou muito feliz não significa que roubei a cota de ninguém. O meu contentamento não diminui o seu potencial de se sentir pleno e realizado. Ou, pelo menos, não deveria. 
 
Mas existem pessoas que percebem a felicidade como o bolo. E, assim, a cada encontro com alguém radiante tendem a pensar que sua fatia ficou comprometida e necessariamente mais modesta. E, quando pensamos assim, de fato, a alegria alheia acaba sendo motivo de perturbação e pode, portanto, reduzir nossas possibilidades de plenitude. 
 
Quando se compreende que felicidade é um estado de contentamento que pode ser acessado por todos que se propuserem a construir essa jornada, fica mais fácil perceber que esse recurso não é finito e que o fato de a porção do colega ser imensa não diminui o tamanho daquela que está disponível, esperando por nós. 
 
Ademais, felicidade não tem lista predefinida de sabores e não se constrói com receitas prontas – ainda que sejam herdadas do livro da família. 
Um bom bolo quase sempre vem de uma receita de vó. Mas é bem pouco provável que as suas pulsões internas sejam representadas e satisfeitas pelos mesmos ingredientes que deixavam sua avó feliz. Ou seja, não adianta reproduzir o passo a passo dela. 
 
O sabor também precisa ser observado. Chocolate pode parecer unanimidade, mas, quando o assunto é felicidade, o que significa deleite para uns pode ser o mais amargo dos sabores para outros. 
 
Copiar receitas de contentamento de alguém radiante é desconsiderar a especificidade do nosso paladar. Até o clássico bolo de chocolate tem suas nuances. Se para alguns a calda que lhes agrada é a de brigadeiro, para outros só serve se for uma ganache mais intensa. Sem falar, é claro, nos que trocam qualquer fatia do bolo de chocolate por um pedaço morninho de bolo de fubá com requeijão. 
 
Felicidade é recurso infinito e particular. Não se manifesta com receitas prontas, mas sim com a mistura entre a profunda percepção das nossas pulsões e a disponibilidade para conquistar estados que nos tragam plenitude e preenchimento. 
 
Ser feliz nada tem a ver com a fugacidade do prazer trazido pelas colheradas doces. Não é sobre prazeres intensos e efêmeros ou sobre picos de entusiasmo. 
 
É a construção de uma vida que reflita nossas convicções. É a liberdade adquirida quando a nossa vida pública não difere tanto da nossa vida privada. É tranquilidade de não precisar representar. É a autoapreciação que nasce dentro daqueles que se movimentam com verdade rumo à sua melhor versão e que, ao mesmo tempo, se desobrigam da perfeição. É um estado de contentamento pela vida que, apesar das colheradas amargas, permanece existindo. 
 
De fato, é recurso disponível a todos. Mas não é mistura pronta. Você precisa quebrar os ovos, bater as claras e explorar algumas tentativas para ir compreendendo, aos poucos, como criar a sua própria receita. 

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